Bruno: da infância pobre ao conto de fadas que virou tragédia

Do Buracão ao Maracanã, a história do menino abandonado pelos pais que viveu um conto-de-fadas e se envolveu num crime inacreditável

Dois dias antes do natal de 1984, um menino nasceu numa família pobre na periferia de Belo Horizonte. Um dia depois deste mesmo natal, a mãe do menino, Sandra Cássia de Oliveira Santos, e o pai dele, o caminhoneiro Maurílio Fernandes das Dores de Souza, pediram para que a avó paterna, Estela Santana Trigueiro de Souza, tomasse conta do recém-nascido. Com três dias de idade, o menino Bruno Fernandes das Dores Souza começava a viver um conto de fadas típico do Brasil: o do menino pobre que vence na vida através do talento para jogar futebol. Em 2010, 26 anos depois, o conto de fadas virou tragédia.

 

Maurilio e Sandra Cássia continuaram casados por quatro anos. Em 1986, dois anos depois do nascimento do futuro goleiro, o casal se mudou para Teresina, no Piauí. Segundo depoimento de Sandra, em entrevista a uma emissora de TV em 2006, Dona Estela não deixou que Bruno fosse com o casal. Eles levaram, porém, o outro filho, Rodrigo, então com um ano e oito meses. Quando os pais se separaram em 1988, Sandra foi morar com a mãe em Alcobaça, no sul da Bahia. Maurílio, nômade, encontrou uma família piauiense para criar Rodrigo.

Na final da Copa da Alemanha, há exatos quatro anos, o francês Zinedine Zidane deu sua famosa cabeçada no italiano Materazzi por causa de uma provocação boba. Ainda no estádio, seu companheiro de time, o atacante Thierry Henry, disse uma frase sábia – e triste:

– Você pode tirar o menino de dentro do bairro pobre. Mas você nunca tira o bairro pobre de dentro do menino.

Talvez seja possível dizer algo parecido sobre Bruno. No início de maio de 2007, um repórter se aproximou do goleiro. Era véspera do dia das mães – e o pedido era simples: “mande um recado para sua mãe”. A reação de Bruno foi súbita – e violenta. O goleiro fechou o rosto, despejou uma série de palavrões e bateu a porta do vestiário do CT Ninho do Urubu, em Vargem Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

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O “Buracão”, campo de Ribeirão das Neves, onde Bruno jogou (Foto: Cahê Mota / GLOBOESPORTE.COM)

 

Bruno foi criado pela avó Estela em Minaslândia, bairro pobre de Ribeirão das Neves, cidade de 340 mil habitantes na periferia de Belo Horizonte. Foi ali que Estela e o avô Roberto se fixaram quando o menino Bruno tinha sete anos. O pai, Maurílio, só veio a conhecê-lo de perto quando o goleiro completou 18 anos e já jogava futebol. Em 2002, pouco antes de morrer, Maurílio reencontrou também Rodrigo, o irmão que vive no Piauí, e disse:

– Seu irmão virou jogador de futebol. Está no Atlético-MG.

Maurílio, porém, não viu o sucesso de Bruno. Pouco depois de reencontrar os filhos que deixou para trás, ele faleceu em São Paulo em 2002. E deixou para trás suspeitas de envolvimento criminal. A mãe, Sandra, voltou à vida de Bruno em 2006. O goleiro foi procurado e aceitou conhecê-la em um programa de televisão. Ficou emocionado. Mas não a ponto de mudar sua vida:

– Minha mãe é a dona Estela (78 anos). É minha velhinha e a quem eu devo tudo. Estou com ela sempre – disse, em 2008, com os olhos cheios de lágrimas.

– Sou a mãe-avó do Bruno. Pra mim ele não tem defeitos – disse recentemente dona Estela em entrevista ao jornal O DIA.

Em 2006, Bruno chegou a se reaproximar da família da mãe e trouxe a avó materna, Lucely Souza de Oliveira Santos (de 65 anos), para passar um mês em sua casa. A mãe, Sandra, foi internada por alcoolismo numa clínica e o goleiro tentou ajudar. Mas, segundo a avó, não conseguiu:

– A Dayanne, mulher dele, não gostou da gente. O Macarrão e os outros ficam em cima dele. Ele tem a cabeça fraca e cai na conversas dos outros – disse Lucely também ao DIA.

A falta de pai e mãe fez Bruno criar uma família particular. Seus amigos mais próximos sempre foram três: Luciano, o Lulu; Luiz Henrique Romão, o Macarrão; e o primo Sérgio Rosa Sales. Os dois últimos são suspeitos de envolvimento na morte de Eliza.

 

Em outubro de 2008, o GLOBOESPORTE.COM fez uma série de reportagens sobre a infância do atleta. Luciano, Sérgio e Macarrão contaram detalhes sobre a infância do goleiro, de como ele começou a jogar, os apertos que passou – e a relação que tinha com as mulheres.

– Tudo começou aqui no Buracão – disse então Luciano, apontando para um campo de terra – Depois fomos pra Venda Nova e pro Caíque, onde Bruno conheceu o Macarrão. Ali começou a trajetória pessoal e profissional do Bruno.

– Ele era muito feio. Chamávamos ele de Cabeça de Meia, porque tinha ombro grande e cabeça pequena – completou.

– Ele queria trabalhar e treinar, a gente queria brincar com as meninas. Ele sempre foi muito sério – disse Macarrão.

Luciano, na época estava distante do goleiro, mas acabou lembrando emocionado, de anos difíceis:

– Teve dia que a gente comia pipoca no ponto de ônibus. Não tinha dinheiro pra treinar. Não tinha dinheiro pra comer – disse.

frame_sergio_rep_30O primo Sérgio mostrou a casa que Bruno conseguiu reformar com seus primeiros salários no Atlético-MG. Macarrão mostrou todos os locais marcantes da vida do goleiro. A proximidade dos dois continuou tão grande que, durante a investigação sobre a morte de Eliza, Macarrão tatuou uma frase de fidelidade: “Amizade verdadeira, que nada vai separar”.

– Ele não é um amigo qualquer. É meu irmão e sei que vai me acompanhar sempre – costumava dizer o goleiro, numa profecia talvez trágica.

Os amigos contam que a infância difícil teve bastante influência na personalidade de Bruno. Carente, o goleiro sempre teve dificuldade em ficar sozinho. A fama de bad boy vem desde a infância. Em entrevista no ano passado, ele contou como era seu comportamento na época de estudante em Ribeirão das Neves.

– Eu zoava muito, mas sabia da responsabilidade. Tirava boas notas, mas agitava a sala. De vez em quando, ganhava aquela chamada, mas a diretora estava até acostumada. Passava lá, tomava um cafezinho com ela e estava tudo certo. As notas eram boas. Eu não era um excelente aluno, mas ficava entre os melhores. A matéria em que nunca fui bom, e nunca escondi de ninguém, era matemática. Era meio burrinho nessa área, mas nas outras tiro de letra.

 

Vindo de uma família com poucos recursos, Bruno sempre diz que não pensou inicialmente em ser jogador de futebol. Trabalhou descarregando caminhões, mas sem deixar os estudos. Queria ser engenheiro mecânico de avião, ideia que dizia ainda guardar para depois do fim da carreira. Foi na época de estudante que conheceu Macarrão (no vídeo, assista a um sorridente Macarrão, hoje um dos principais suspeitos do assassinato de Eliza Samudio, falando sobre a infância de Bruno em MG).

 

– A gente vendia o vale-transporte para poder comer alguma coisa e voltava andando. O Luciano e o Macarrão (amigos de infância) começaram a trabalhar e os dois me davam dinheiro da passagem. Custava R$ 0,90 e eu não tinha condição. Eles me ajudaram. Tive muitos amigos que foram para o caminho do crime. Os únicos que sobraram foram o Lulu e o Macarrão mesmo. Outros se perderam. Eu tinha tudo para virar um viciado ou alguma outra coisa. Mas eles mesmos falavam: “Você não, você tem futuro”.

O futuro começou a ser desenhado no Buracão. Como sempre, com a ajuda dos amigos. Quando ainda tentavam a sorte nas categorias de base do Venda Nova, time da segunda divisão mineira, Bruno e Lulu por vezes deixavam de treinar por faltar dinheiro para a condução. Lulu então arrumava recursos de forma exótica: roubava as galinhas do quintal da avó de Bruno e vendia para conseguir algum trocado. Quando Lulu não ajudava, Macarrão dava parte do salário que ganhava na Ceasa.

– Hoje eu reconheço isso e tento ajudá-los da melhor maneira possível – costuma dizer Bruno.

No Venda Nova, Bruno chegou aos 12 anos. O time pagava condução e cesta básica – e o magro e alto Bruno começou a mostrar talento.

– .Ele foi fazer o teste no Venda Nova como lateral-direito. E eu falei pra ele: “Bruno, seu potencial é no gol”. No teste, os caras bateram 18 pênaltis e ele pegou 16, um foi gol e o outro foi pra fora – disse Luciano em 2008.

 

bruno---casamento_30Em 2004 se casou com Dayanne, sua namorada de infância, e seguiu morando na casa dos avós. No mesmo ano, se mudou para Belo Horinzonte – foi treinar na base do Cruzeiro – de onde foi dispensado pelo técnico Ney Franco. Voltou a Ribeirão e trabalhou como treinador de goleiros no campinho do Toriba, mas rapidamente teve nova chance, agora no Atlético -MG. Nas divisões de base do Galo, se envolveu numa briga na porta de um colégio de BH. Depois, chegou a ser detido por participar de um racha. Foram as primeiras confusões.

Em 2005, Bruno se tornou titular do Galo e se destacou. Chamou a atenção do fundo de investimentos MSI, ligado ao Corinthians, que adquiriu seus direitos. Treinou três meses no clube paulista, mas jamais jogou. Em 2006, acabou sendo emprestado ao Flamengo – onde se firmou a partir de 2007. Foi tricampeão carioca – com papel decisivo em 2007 e 2009, quando defendeu os pênaltis que garantiram a vitória rubro-negra. Foi tão bem que o Flamengo comprou 100% de seus direitos federativos. Em 2009, foi um dos responsáveis pelo título brasileiro. Mas, fora de campo, os problemas continuavam. Noitadas, mulheres e os rumores de que batia ponto, ao lado de vários jogadores do clube, em festas na favela da Rocinha.

 

Em 2010, a promessa: o fim da fase badboy

Na pré-temporada do Flamengo, em janeiro de 2010, Bruno se mostrou incomodado. Pediu para dar entrevista e anunciou que estava cansado da fama de jogador-confusão. Queria mudar – disse que estava cansado de aparecer do lado errado da fama.

A promessa não passou do discurso. Em campo e fora dele, o Flamengo se perdeu. E Bruno foi junto. Estava presente no episódio do Morro da Chatuba, quando a enciumada noiva de Adriano, Joana Machado, quebrou o carro dos jogadores. Foi Bruno que discutiu asperamente com a “Imperatriz” quando ela chegou na favela. Pior foi sua tentativa de defender o Imperador depois.

 

– Qual de vocês que é casado que nunca brigou com a mulher? Que não discutiu, que até não saiu na mão com a mulher, né cara? Não tem jeito. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher, xará.

bruno-no-venda-nova_30A frase super-sincera pôs Bruno nas cordas. Advertido pela presidente Patrícia Amorim, teve de pedir desculpas públicas às mulheres. Foi perdoado. Na célebre noite da festa n a Chatuba, Bruno montou um cavalo no local e saiu cavalgando pela favela, numa cena exótica, que foi comentada entre risos por outros jogadores.

Bruno voltou a bater de frente com o bom senso após a derrota por 3 a 2 para o Universidad de Chile, no Maracanã. Vaiado, disse que estava “se lixando” para a torcida. No dia seguinte foi interpelado na frente da imprensa pelos chefes das organizadas rubro-negras. Teve de pedir, de novo, desculpas.

Difícil achá-lo em boates ou shows. Sempre preferiu festas privadas. Quase sempre de arromba. Os refúgios cariocas eram casas alugadas em Santa Cruz, bairro afastado da Zona Oeste do Rio de Janeiro, ou barcos que passavam a madrugada em mar aberto. A fama de mulherengo não o incomodava – mas a celebridade, sim.

– Uma vez fiquei com uma global. Saí com ela na orla do Recreio e veio um paparrazzo. Pensei: “Essa não é a minha. Vou pular fora” – disse, sorridente, no fim de 2008.

goleiro-comemora-aprovacao-no-galo_30Apesar da adaptação à vida carioca, nunca esqueceu das idas ao sítio Família Souza, em Esmeraldas, na região metropolitana de Belo Horizonte. Mesmo local onde a Polícia Militar procurou pelo corpo de Eliza. Após um jogo do Flamengo em Minas, em 2008, o sítio apareceu no noticiário policial por causa de uma outra confusão. Marcinho, companheiro de Bruno, agrediu uma prostituta no local. E a história sobrou, claro, para o dono do imóvel.

– Depois dessa, nunca mais convidei jogador – afirmou Bruno.

Nos quatro anos de Rio de Janeiro sempre circulou ao lado do amigo de infância Macarrão e do segurança Marcelo Soares Silva, o Marcelão. Com salário de cerca de R$ 200 mil, o goleiro levava uma vida confortável. Tinha um apartamento no Recreio dos Bandeirantes. E recentemente, se mudou para uma casa no mesmo bairro – num condomínio onde moram outros jogadores do Flamengo. O segurança Marcelão, que se afastou do goleiro há dois meses por causa de outro emprego, sempre defendeu o goleiro de 1,91m e 88kg:

– Ele tira a roupa do corpo para ajudar os amigos. É um cara alegre, sem maldade. Sempre que acabavam os jogos saíamos para comer uma pizza, tomar um chope… Ele é carinhoso com as mulheres. Sempre convivi com o Bruno e a Dayanne (ex-mulher e mãe das duas filhas dele) e nunca vi briga dos dois. Ela foi a melhor mulher para ele porque entendia que ele precisava de uma hora para os amigos – disse Marcelão, padrinho de Maria Eduarda, a filha mais nova de Bruno.

Mas quem conviveu com Bruno diariamente na Gávea, sabe que o temperamento do goleiro sempre foi problemático. Não por acaso, seu apelido entre os jogadores é “Maluco”.

– Ele muda de segundo a segundo. É capaz de se comover com uma criança com câncer e dar uma pancada em uma pessoa que olha torto. Totalmente imprevisível – contou um jogador.

macarrao-melhor-amigo-de-bruno_30Em 2009, Bruno foi um dos principais líderes do elenco rubro-negro. Ele é que acertava com a diretoria os prêmios dos jogadores. Mas essa liderança foi questionada por causa de sua instabilidade. Após o título brasileiro, outros jogadores começaram a dizer que a “loucura” de Bruno ficou insuportável. No intervalo da derrota para a Universidad Catolica, em Santiago, o goleiro tentou agredir Petkovic. A amizade com Álvaro, figura contestada no grupo, também o prejudicou.

– Ele não tem a menor condição emocional de ser capitão da equipe. Onde já se viu o líder do time entrar no vestiário e querer socar um jogador acusando-o de corpo mole? – afirmou um dos atletas, que pediu para não se identificar.

A participação de Eliza na vida dele, teoricamente, seria fugaz. Os dois se conheceram em um churrasco na casa de Adriano e continuaram a noite na residência do goleiro reserva do Flamengo, Paulo Victor. Bruno achou que a história terminaria naquela noite, mas foi surpreendido com as ligações da estudante informando que estava grávida. A notícia o assustou. Em um primeiro momento, se revoltou e citou o passado “boleiro” de Eliza para se defender.

– Não sei por que ela foi implicar logo comigo. Já saiu com um monte de jogadores de futebol. Mas vai ter que provar que esse filho é meu. Duvido muito. Só fiquei com ela uma vez num churrasco – disse, em agosto de 2009.

 

Quando o jornal Extra publicou a acusação de cárcere privado e ameaças, o goleiro se revoltou. Com a edição do periódico embaixo do braço, ficou dando voltas no CT do Ninho do Urubu, completamente transtornado, com o jornal debaixo do braço e perguntando:

 

bruno_flamengo_coletiva_ae_30– Quem é do Extra? Quem é do Extra?

 

O goleiro disse que queria fazer o autor da reportagem engolir literalmente o jornal – mas não o encontrou. Acabou acalmado por advogados, que o orientaram a aguardar o nascimento do bebê, no início deste ano, para fazer o teste de DNA e dirimir a dúvida sobre a paternidade.

– Essa menina (Eliza) perturbava muito. Ela me ligava e ligava para outros jogadores pedindo para dar recado para o Bruno – disse o segurança Marcelão.

Mas, mesmo com o nascimento do filho, a relação não melhorou. Bruno, cada vez mais instável, pareceu perder o prumo. Em outra oportunidade, ameaçou novamente um jornalista – dizendo que “pra ter cuidado com o que escrevia pois alguma coisa poderia acontecer com ele”

– Ele se sentia o Super-Homem. Achava que nada o atingiria – diz um profissional que o conheceu nos quatro anos de Flamengo.

Mas ninguém seria capaz de prever que o fim do conto-de-fadas de Ribeirão das Neves seria tão trágico. E que Bruno, o goleiro “maluco”, o pegador-de-pênaltis, deixaria de ser mocinho para se tornar vilão nacional.

Fonte: Globo Esporte

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