Esses dias eu venho pensando sobre como me sinto psicologicamente já que venho vivenciando um desconforto interno que não consigo nomear, por isso resolvi escrever sobre. Toda vez que penso nesse sentimento lembro do texto “A Transformação do Silêncio em Linguagem e Ação” da Audre Lorde, em que ela narra que caso a gente não quebre o silêncio, ele vem e te dá um soco de dentro para fora. Acho que estou vivendo esse momento, em que penso nas palavras que não foram ditas por mim para pessoas que possuem os reais privilégios estruturais concedidos por classe, raça e muitas vezes gênero, para não ferir seus egos ou prejudicar pessoas próximas. O silêncio cobra, e minha mente está confusa e dolorosa.
Por Stephanie Ribeiro Do Plano Feminino
Pessoas brancas próximas agem totalmente despreocupadas e descoladas da realidade mesmo estando ali ao meu lado, uma pessoa negra que fala sobre racismo cotidianamente. Amigos de trabalho, colegas da universidade, professores, vizinhos, amigos de pessoas próximas, fui percebendo que invariavelmente todas as pessoas brancas que me cercam não têm, mesmo que tentem, educação racial para conviver ao lado de pessoas negras sem esfregar seus privilégios raciais em nossas caras. É impossível, o branco “amigo” brasileiro não consegue.
O “bom amigo branco” sempre vai defender o direito de ter a empregada negra, ele sempre vai deixar claro que mulheres negras ocupam espaços mais sub-humanos na sua mente que brancas, ele sempre vai defender que as opressões que não atingem brancas são mera banalidade, ele sempre vai se dizer antirracismo mesmo se cercando apenas de brancos e nem questionando a ausência negra. “Amigos brancos” agindo 100% das vezes para defender seus próprios privilégios mesmo nas ações que nem percebem. E nós, os “bons amigos negros” desse círculo, temos que engolir sapos, com medo de represálias.
Engolir sapos é o que muitos negros que conseguiram alguma ascensão fazem. No meu caso eu percebi que não consigo, não sou mentalmente capaz. A convivência com essa incoerência racista me sufoca e psicologicamente me mata, eu me sinto desconfortável quando quem deveria estar no desconforto é o privilegiado. Diferente do racismo que atira a cada 23 minutos num jovem negro, essa sensação de impotência é causada por um racismo que como um conta gotas de ácido vai pouco a pouco abrindo uma ferida na minha mente me fazendo cogitar que estou enlouquecendo a cada novo surto que essa sensação de esgotamento me causa.
Me sinto doente sem estar fisicamente doente, mas fisicamente é tão exaustivo que não tenho forças para mais nada. Então, de onde vem tudo isso?
Recentemente estive numa palestra em uma universidade de medicina e não tinha pessoas negras entre os estudantes, assustadoramente os negros que estavam ali eram de outra universidade ou faziam enfermagem. Mesmo em 2017, olhei e contei todos os negros ali presentes e não deu 10. Respirei e falei por eles sobre o como a universidade é um ambiente hostil quando se é negro. Então, depois da fala de outras duas mulheres negras, um garoto branco resolveu declamar um poema sobre a “nossa realidade negra” para fechar o evento. Foi quando alguns garotos que estavam no auditório levantaram e começaram a bater palma para ele de pé e fazer gestos de apoio. Tinha uma certa euforia no comportamento deles, uma euforia que eu não conseguia entender, até perceberem que era um apoio racial e de gênero.
Foto:Alile Dara Onawale para o curta KBELA de Yasmin Thayná
Na minha cabeça está registrado que: a última fala foi branca e foi a única fala daquele dia aplaudida de pé num debate sobre a realidade da mulher negra. Isso te incomoda? Isso me incomoda, não sai da minha cabeça, aquele apoio, fortalecimento, aquelas mãos estendidas, a expressão daqueles alunos me faz estar aqui, 5 da manhã, escrevendo esse texto, pois há semanas não consigo dormir direito. O que eles queriam dizer com aquilo?
Os sujeitos brancos manifestam pelo seu corpo, seu olhar, sua conduta o seu racismo. Eles muitas vezes nem sequer planejam, mas agem de forma desumanizadora demarcando que se entendem soberanos e a nós como subalternos. Mas, se com estranhos isso imobiliza, imagina ver pessoas próximas agindo dessa forma?
Para mim, fica uma sensação de nadar, nadar e continuar sendo afogada. Me senti mal nos dias que sucederam a esse debate, como se eu tivesse levado um tapa na cara, uma sensação que é inexplicável. Experimentei sensação parecida quando fui chamada por uma empresa de publicidade para analisar uma campanha que tinham criado, quando cheguei no local eu percebi porque eles tinham me chamado. Naquela empresa na Berrini, um dos principais polos econômicos de São Paulo e do país, me deparei com um prédio imponente com uma arquitetura para demonstrar poder e demarcar quem pode e quem não.
Foi num dos andares que cheguei numa sala com mais de 100 funcionários atendendo contas de clientes grandes, e ali eu não vi nenhum negro além do faxineiro. Então eu estava ali, sem ter sido avisada sobre o racismo institucional da empresa pela mulher branca que me convidou, prestando um serviço para eles gratuitamente sem nem ao menos os envolvidos se sentirem mal por me pedir um favor quando não têm coragem nem de contratar pessoas da mesma cor que a minha. Eu não quero dinheiro, eu só quero ter certeza que negros podem um dia ocupar os mesmos postos de trabalho que brancos.
No Brasil a gente continua sendo explorado, a gente continua vendo nossas pautas serem vendidas por empresas que têm quadros com nenhum ou no máximo dois negros, a gente continua vendo uma bondade branca que é um chicote.
Quando saí daquele lugar era como se tivesse levado uma surra. Toda vez que vejo essa campanha eu tenho vontade de, com um taco, quebrar aquilo. Afinal, o que adianta uma mulher negra simbolizando força para vender um produto, se não contratam uma pessoa negra no local que criou aquela arte? Umazinha! Uma só! Num país de 54% de negros! O que adianta me chamar se as pessoas não querem mesmo mudar as coisas?
O que vocês brancos estão fazendo com a gente?
Mentalmente falando é exaustivo ver como essas empresas mesmo “descoladinhas” refletem que qualquer branco medíocre goza da humanidade e defesa, que nenhum negro muito, muito bom no que faz, possui. São empresas, mas na verdade são um reflexo da vida. A minha vida circulando em espaços de classe média é ver gente branca sendo favorecida pela sua inércia. Não sei mais se vale realmente o preço da nossa saúde mental conviver com o privilégio sendo jogado em nossas caras.
Alile Dara Onawale para o curta KBELA de Yasmin Thayná
Esses exemplos que dei fizeram eu me sentir ainda menos pior que a forma que me sinto vendo o comportamento e falas de “amigos brancos”, que se dizem amigos enquanto simulam preocupação racial. O que as pessoas brancas estão querendo ao se aproximar de nós enquanto mantém seu racismo intacto? Fingindo que se preocupam enquanto mantém uma lógica assustadora e violenta de manutenção de privilégios para seus semelhantes! Quando brancos vão exigir que tenha alunos negros em sala de aula? Quando brancos, assim como eu, vão contar quantos negros têm no ambiente em que estão? Quando brancos vão parar de favorecer estruturalmente apenas outros brancos? Quando brancos vão parar de cobrar uma meritocracia absurda em cima de nós, negros, enquanto mantêm perto de si qualquer branco medíocre? Quando brancas feministas vão parar de se importar só com seus problemas brancos e começar a entender que problemas estruturais que atingem mulheres negras são problemas de todas e não apenas fofocas?
Quando eu vou poder ser uma “garota normal” e deixar de ser aquela que tem que ficar apontando racismo, ausência de negros e fazendo recorte racial num país de maioria negra, para “amigos brancos”? O que meus amigos brancos estão fazendo para mudar a realidade racista enquanto dizem se preocupar comigo? Comecei a perceber que eu estou surtando em ver a forma como o privilégio branco de pessoas próximas a mim rifa a vida de pessoas negras e elas nem percebem isso, eu me sinto cúmplice e vítima. Sinto vontade de não sair mais de casa, sinto que minha cabeça não consegue lidar com tanta incoerência e que minha saúde mental vem nesses seus anos longe da minha família sendo destruída.
Penso como toda essa convivência com pessoas brancas sem consciência racial vem fazendo mal para meu psicológico, a sensação que venho experimentando é de um esforço gigante para destruir uma estrutura que é nociva, enquanto vejo brancos sentados num sofá tomando suco e me pedindo para ser didática ao explicar o óbvio sobre como funcionam seus privilégios. E a maior prova desses privilégios é a forma como eles não se preocupam em identifica-los, pois só se preocupam consigo mesmos. Conviver com racistas que não conseguem perceber seu racismo e esfregam ele na minha cara, enquanto fingem ser preocupados com esse assunto, me faz mal pois eu tenho todos os instrumentos para perceber a violência, nomear a violência, mas não consigo ainda dizer basta da forma como gostaria.
Tentei escrever sobre essa sensação de estar afogando numa piscina e toda vez que eu chego à superfície percebo que tem uma tampa. E aí, quanto mais empurro tentando sair com medo de morrer, mais afundo. Eu me sinto assim todo dia, eu me sinto sendo puxada toda vez que passo por essas situações. Como disse Audre Lorde: “… nunca se é uma pessoa inteira se guardar silêncio, porque esse pedacinho fica sempre dentro de ti e quer sair, e se segues ignorando-o, ele se torna cada vez mais irritado e furioso, e se nunca o deixar sair um dia diz: basta! e te dá um soco dentro da boca”.
Meu soco chegou.