Chimamanda no Brasil: ‘Falo do que nem todos querem ouvir; o caminho é insistir’

De volta ao Brasil após 14 anos, a escritora nigeriana participa de evento com mediação de Djamila Ribeiro neste sábado (14), no Rio de Janeiro. Aqui, ela defende a literatura como arma de desinformação, fala sobre maternidade, representatividade e, claro, feminismo

O relógio mal havia se adaptado ao novo o fuso horário quando Chimamanda Ngozi Adichie pisou no Rio de Janeiro, na sexta-feira (13), às 10h. Ao desembarcar tudo se fez novidade: o tempo, as histórias, as cores.

Eram poucas as coisas que condiziam com as lembranças da primeira vez que veio ao Brasil, há 14 anos. Pudera: nem ela continua a mesma.

Embora a escritora nigeriana estivesse aqui em 2008 para uma participação na Flip, pode-se afirmar que esta é a primeira vez que ela vem ao país com status de celebridade. Ou melhor, de rockstar. Afinal, são poucos intelectuais no mundo que têm potência para lotar um ginásio – ela participa da conferência Contando histórias para empoderar e humanizar no LER (Salão Carioca do Livro) neste sábado à noite, no Maracanãzinho. A expectativa é atender a um público de 3 mil pessoas.

O hype não é à toa: suas palestras no TedTalk se tornaram virais, a frase “we should all be feminists” (sejamos todos feministas) estampou camisetas (e começando pela Dior) e ganhou debate público desde mesas de bar até bancadas de defesa de tese. Um de seus discursos acabou musicalizado por ninguém menos que Beyoncé na música “Flawless”. Embora suas aparições na mídia chancelem o título de ativista-feminista, a escritora é categórica: “A coisa mais importante na minha vida é a literatura”.

A paixão pela ficção não é da boca para fora. A resposta padrão para todas as mazelas do mundo é “contar histórias”. “Sei que sou repetitiva, mas contar histórias é nosso jeito de seguir em frente. Falo do que nem todos querem ouvir, mas o caminho é insistir. É insistindo que a ‘massa crítica’ irá ouvir e fazer com que outras pessoas, que estavam em negação, ouvissem”, explica enquanto acariciava os livros em português editados pela Companhia das Letras durante a coletiva de imprensa realizada em um hotel em Copacabana.

Segundo a escritora, com a escuta atenta de histórias se pode (tentar) equalizar algumas desigualdades. “Precisamos nos desatrelar de números, gráfico e tabelas. Eles não contam histórias humanas. E são as histórias que fazem com que as pessoas se solidarizem com temas sensíveis. A escravidão, por exemplo. As pessoas precisam entender que quem foi escravizado eram pessoas. Histórias são feitas por pessoas. E à medida que elas vão ouvindo histórias vão criando consciência sobre alguns fatos”.

E como persistir sabendo que há pouca empatia? Exemplos não faltam: um presidente responder “e daí” quando contestado sobre número de mortos por causa da covid-19 ou chamar a maior pandemia que assolou o Brasil de “gripezinha”. “Desenvolver novas formas de contar histórias”, diz. “E persistir, sempre.”

Novas formas de contar histórias são pensadas quase que diariamente em todo o mundo, mas, segundo a escritora, a pandemia pode ter efervescido este movimento. “Eu quero muito ler as histórias de ficção baseadas no horror que vivemos. A humanidade já passou por momentos decisivos, como a peste bubônica e duas guerras mundiais, e muitas histórias interessantes foram contadas a partir desses eventos históricos”, explica. “Quem sabe eu também não estou escrevendo algo sobre isso?”

A frase incerta era a faísca necessária que leitores – e cena literária – precisavam para reacender a esperança sobre uma nova novela. Afinal, o último livro publicado de ficção foi “Americanah” (Companhia das Letras) em 2013 (neste meio tempo ela publicou dois ensaios: “Para Educar Crianças Feministas – Um Manifesto” em 2017 e “Sejamos todos feministas” em 2014). O misterioso motivo do hiato foi enfim revelado.

“A maternidade mudou minha criatividade, tanto de forma positiva como de forma negativa. Houve mudanças no plano emocional e isso tornou minha escrita mais difícil, mas quero muito publicar um romance. Tive experiências nos últimos anos que nutriram muito minha vida.”

E continuam nutrindo. Embora a escritora tenha conjugado no passado, é no presente que Chimamanda vem se fascinando. E isso ficou claro no evento que precedia a palestra no Maracanãzinho. Primeiro, o que chamou sua atenção, foi a representatividade no local (das 18 pessoas presentes 8 eram mulheres negras). Segundo, a diversidade no penteado das mulheres negras brasileiras (“são tantos tipos de tranças, são tão lindos”) e, terceiro, pelas conquistas alcançadas por elas (após uma explicação sobre o que era uma favela e sua relação com a cor de pele, Chimamanda agradeceu e elogiou as duas jornalistas presentes na coletiva de imprensa que moram em favelas).

“Gostaria de agradecer a vocês. Me perguntaram hoje o que é preciso fazer para mudar a realidade, mas vocês sabem: já estão mudando”, afirmou.

“Fiquei muito emocionada. Na primeira vez que vim ao Brasil achei estranho não encontrar nenhum negro, sendo que a maioria da população é negra. Hoje fiquei feliz em ver tantas mulheres negras juntas num mesmo espaço. Foi muito, muito especial”, disse após o término do evento com exclusividade à Marie Claire.

A amiga genial

Após o término da coletiva, Djamila Ribeiro se mostrava sorridente, embora inquieta. A ansiedade tinha motivo: este seria o primeiro encontro presencial entre a filósofa brasileira e a escritora nigeriana antes do evento no Maracanãzinho.

Assim que se viram um abraço efusivo aconteceu e um desenrolar sem fim em inglês foi encaminhado para a área externa do local. Pelo ritmo da conversa, parecia que Djamila e Chimamanda eram amigas de infância. Mas é apenas o efeito Chimamanda, que faz com que qualquer pessoa pareça ser amigo de infância. “Ela é muito simpática. Esta é a primeira vez que a vejo pessoalmente. Eu a entrevistei no Roda Viva [programa da TV Cultura], mas é a primeira vez que temos esse tipo de contato”, diz a filósofa. “Ela queria saber muito do Brasil. Elogiou as jornalistas negras e ficou feliz de ver mais pessoas negras no espaço. Ela quer saber mais sobre a nossa realidade. Me falou ‘me eduque sobre o Brasil’.”

Educar sobre o Brasil é algo difícil, se não dizer impossível. Mas seguramente a percepção de tempo, história, cores fará com que Chimamanda encontre a “escrevivência” de Conceição Evaristo, o “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus ou a “Úrsula” de Maria Firmina dos Reis. Ou simplesmente sua própria história.

O Brasil, principalmente o Brasil-literário-negro, está no radar da escritora. Uma das queixas feitas durante a coletiva de imprensa foi sobre a presença de livros escritos por pessoas negras. “As pessoas sempre me indicam Machado de Assis e Jorge Amado. São ótimos, já os li, mas quero ler algo contemporâneo de escrito por uma mulher negra.”

Não seja por isso. Pedimos para que a neoamiga, Djamila, indicasse três escritoras. “Conceição Evaristo, claro. Não pode começar por outra; Carla Akotirene, uma autora incrível; e Eliana Alves Cruz, que inclusive é daqui do Rio, também incrível”, sugere a brasileira.

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