Ciência, tecnologia e inovação afrodescendente

Ter colaborado para a formação de 120 docentes na 3ª A Cor da Cultura foi o coroamento de um processo que começou em 1988, ano do Centenário da “Abolição” da escravatura. Foi neste ano que despertou em mim a identidade de ser homem negro aos 17 anos.

A partir deste momento comecei a fazer leituras em bibliotecas como o Centro Cultural do Jabaquara (atual Acervo do Viver e da Memória do Afro-brasileiro) o que me fortaleceu para ser o que sou hoje.

Em 1996 com 25 anos e trabalhando no centro de São Paulo como office-boy e já sendo um assíduo consumidor das revistas africanas-americanas Essence e Ebony, comprei uma edição de fevereiro da Ebony onde havia uma propaganda de uma rede internacional de fast-food que dizia que todo dia você usa uma daquelas coisas: caixa de correio, pino de golfe, semáforo, geladeira, caneta-tinteiro e filamento de carbono da lâmpada elétrica; e que assim você estava celebrando a História Negra!

A leitura desta propaganda mexeu comigo e com tudo o que eu tinha aprendido sobre a população descendente de africanos até então: como minhas professoras não nos ensinaram isto? Nem no 1º e nem no 2º grau da época? Comecei a pesquisar o tema para verificar se alguém tivesse produzido um livro sobre o assunto, mas não encontrei ninguém.

Conversei com amigos e amigas sobre o que fiquei sabendo e fiquei indignado com o desconhecimento e pensei anos depois: se ninguém escreveu sobre este assunto eu vou escrever! Comprei dicionários e com o conhecimento que tinha da língua inglesa passei a pesquisar sobre o assunto.

Em 2005 fiquei desempregado e com o dinheiro da rescisão contratual fiquei nove meses em casa traduzindo e organizando o livro.

No final do ano o livro estava pronto! Mostrei para os meus dois professores que eu admirava o professor Dr. Wilson Barbosa do Departamento de História da USP que me ajudou a dar um nome para o livro: Negras e Negros Inventores e Cientistas. Contribuições para o progresso da humanidade. Ele também me indicou uma editora da FFLCH para publicação. Mostrei para o professor Dr. Kabengele Munanga do Departamento de Antropologia da USP que elogiou a iniciativa do tema e me convidou para aprofundar o tema na biblioteca do Centro de Estudos Africanos.

Registrei o livro, depois enviei para todas as editoras que conheço o projeto do livro, fui em Bienais do livro e mostrei meu trabalho, mas sem sucesso, diziam que o tema não se encaixava na linha editorial da empresa.

Oito anos depois continuo no processo pois creio que há mercado para o meu livro nas escolas públicas e particulares, o tema interessa mas falta encontrar quem assuma a coragem de questionar dogmas seculares sobre a suposta ignorância africana e afrodescendente na área de ciências e a superioridade branca europeia neste assunto chave para o desenvolvimento de qualquer país.

Para escravizar a população africana foi necessário utilizar força militar, mas parar conquistar mentes para aceitar sua supremacia foi utilizado a ideologia que afirmava que as religiões africanas eram satânicas, que os seus hábitos culturais eram bárbaros, que eram feios seus traços físicos como cabelo, cor da pele, cor dos olhos, nariz, boca e formato do corpo e que seu povo não tinha história e nem inteligência para produzir ciência.

O analfabetismo que fomos relegados por séculos nos afastou da nossa ancestralidade e de nosso legado para a humanidade que é diverso. O que eu aprendi na escola foi puro eurocentrismo colocando o homem branco no topo da humanidade: ele foi criado por Deus sua imagem e semelhança, sendo então o próprio Deus branco! Jesus, Maria e José. A maioria dos santos são brancos, os líderes evangélicos que questionaram o poder da Igreja Católica são brancos, a história é contada pela sua ótica, a ciência é feita por eles, o que reafirma o seu ser e estar nas instâncias de poder mundial.

Entrei na escola pública estadual e municipal de São Paulo e Diadema em 2006 e desde então trabalho com o alunado sobre esta história ideológica que fomos expostos e desfazendo mitos e estereótipos sobre a população indígena e africana, populações que foram escravizadas e marginalizadas pelos eurodescendentes. A Lei 10.639 de 2003 foi uma conquista do Movimento Negro que no século 20 e 21 vinha lutando para que a escola reveja seus conceitos e que seja multicultural.

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As pessoas negras são um povo global. A humanidade começou na África e se espalhou para os confins da terra, muito tempo antes da escravidão. E os descendentes desses imigrantes africanos originais ainda podem ser encontrados nas partes distantes da Terra. A África é o continente mãe, africanos são o povo original da Terra e os africanos não devem ter nenhum sentimento de inferioridade. Conhece a ti mesmo! Professor Runoko Rashidi

A internet e novas descobertas científicas confirmam a tese de que o ser humano moderno evoluiu na África e dali migrou para todos os continentes, se adaptou e criou a tecnologia em nosso planeta.

Na formação demonstrei que foram os primeiros seres humanos que desenvolveram a tecnologia básica para que a nossa espécie pudesse sobreviver em climas tão diversos e que pudesse se adaptar ao meio ambiente.

Os primeiros seres humanos tinham a pele escura e cabelos crespos e toda a humanidade descende de nós africanos e africanas.

Nesses 25 anos aprendi com as leituras que fiz que a cor da pele é uma adaptação ao meio ambiente e que não existe esta hierarquia do branco ser superior, isto foi uma invenção dos racistas europeus que criaram o racismo a partir do século 15.

Este sistema branco racista excludente foi construído por séculos, mas podemos desconstruir esta ideologia e criar um mundo de igualdade de fato e sei que não será fácil. Como dizia Bob Marley: libertem-se da escravidão mental, ninguém além de nós podemos libertar nossas mentes.

*Mestre em História pela Universidade de São Paulo; Alumni do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford, Professor de cursos de formação de docentes, Professor da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e escritor do livro Negras e Negros Inventores, Cientistas e Nobéis (no prelo).

 

Fonte: Mamapress

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