A primavera aporta em Belo Horizonte na companhia do cinema. Às cinco horas da tarde de 23 de setembro, a fila dobrando quarteirão na Praça Sete, encarnando uma audiência ansiosa para ver a primeira exibição do Agente Secreto de Kleber Mendonça Filho em terras mineiras. A exibição começou por volta das 21:30, após a cerimônia de abertura da 19a. edição do CineBH, o terceiro festival do calendário da Universo Produção no estado, depois de Tiradentes e Ouro Preto.

O palco do Cine Theatro Brasil então se abre para a performance do Agbara Groove um quarteto de percussão que tem tanto a força Ilú Obá De Min, das mulheres que tocam tambor, como o axé de Ilu Inã, que traz a alma do fogo para a apresentação incendiária do Favelinha Dance, com a batida do funk que num passado recente era um ritmo interditado em festas de abertura de festivais de cinema de grande prestígio e tradição. Ao coro de talentos se soma a multiartista Josy.Anne com uma releitura contemporânea da congada mineira. Nessa encruzilhada da ocupação com o espetáculo, a apresentação da noite esteve sob a regência de David Maurity que tem carimbado seu nome na cena política e cultural de BH desde a Gaymada, povoando a Praça da Estação com muita viadagem. Em sua companhia esteve Lira Ribas, atriz, cantora, rainha da Corte Devassa e filha de Marku Ribas, patrimônio da música preta mineira. A noite ainda reluziu negritude com o ator Carlos Francisco, o grande homenageado desta edição.
Quem frequenta os festivais da Universo Produção certamente conhece a capacidade de articulação e diálogo da dupla Raquel Hallak e Quintino com instituições e o poder público. Assim, dentre as autoridades presentes na abertura certamente estavam figuras parlamentares da militância da cultura como Cida Falabella e Bela Gonçalves, ou representantes da Petrobrás, patrocinadora master do festival ou ainda o aliado Tribunal de Contas do Estado ou do poder executivo do município.

De alguma maneira, a cerimônia de abertura foi um preâmbulo cuja contemporaneidade contextualiza bem uma obra que revisita um Brasil de 1977 oferecendo uma tradução possível de tempo despudoradamente autoritário, corrupto e racista, mas sem se esquivar da comicidade das caricaturas dos tipos populares, dos folclores e lendas urbanas. Resulta assim numa obra que amalgama bem fatos e apagamentos históricos com realismo fantástico numa imponente e deliberada crônica do absurdo atualizada perenemente.
Assim, o Agente Secreto é também uma prosa grandiloquente entre passado e o contemporâneo em que o Recife é palco do carnaval, da anarquia cômica, (mas organizada em figuras como a dona Tânia), além de ser capital da pesquisa científica inventiva (ainda que sabotada), ou lar para refugiados políticos que vem desde a guerra de libertação de Angola ou do exílio imposto pela famíloa, a exemplo do jovem negro gay, ainda que seja um personagem desdentado e subserviente, num horizonte estreito de existência. Kleber Mendonça não se esquiva de rememorar os ecos da Casa Grande e Senzala, como uma matraca indiscreta.

Ancorado numa estética da nostalgia de um país do desbunde ordinário reencenado com uma direção de arte apurada, fotografia que reproduz a textura de película, cortes em cortina, formato panorâmico, etc, O Agente Secreto é tanto uma carta de amor ao povo brasileiro, pleno de virtudes e vícios; mas também a uma certa cinefilia da infância do diretor. Neste thriller policial e político, com uma estrutura espiralada que desfila um coral de personagens com mais ou menos destaques, numa alegoria arquetípica, o diretor equilibra bem as noções de afeto e abjeto. Um filme que traz um álbum de família que cheira tanto à naftalina quanto à putrefação da ditadura miliciana. Assim, Recife se apresenta calorosa como um carnaval que contempla desde Marcelo/Armando, um agente clandestino que também é um pai, um marido e um professor injustiçado, estrelado por Wagner Moura; Dona Tânia Maia que dá corpo à Sebastiana como um senhorio que é uma matriarca vanguardista e hilária, que abra sua pensão para subverter a ideia de “quarto de despejo”; o ator homenageado Carlos Francisco como Seu Alexandre, um projecionista negro que é um grande conhecedor de cinema, ainda que invisibilizado em sua caverna. Mas é também a mesma capital que acolhe Euclides (Robério Diógenes) como um delegado coringa, um trickster representante da banda podre dos agentes públicos e tal como um fio desencapado, além de ser completamente imprevisível, é catalisador da emergência e reprodução de outros vermes do submundo do crime.
Agente Secreto é um filme que celebra a festa, a comédia, a rua, o cinema, de maneira lúdica e onírica, mas é também um filme de pesadelos, bem sintetizado na metáfora do tubarão, como blockbuster e como signo do perigo que habita a orla paradisíaca de Recife. Um encontro entre poética e necropolítica que abre alas para a edição de um festival cujo recorte curatorial é “Horizontes Latinos: Nós Somos o Futuro?”. Um tema que depende do passado no retrovisor como companhia dinâmica e perene.
Viviane Pistache é preta, mineira, pesquisadora, roteirista, curadora e, de vez em quando, crítica de cinema.