Como evitar fraudes nas cotas raciais?

Representantes do movimento negro debatem resolução do Ministério do Planejamento sobre a aferição da autodeclaração nas cotas raciais em concursos

Publicada em 2 de agosto no Diário Oficial, uma instrução normativa do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão definiu novas regras para analisar a veracidade da autodeclaração racial prestada por candidatos às vagas reservadas para cotistas em concursos públicos.

A partir de agora, aqueles que optarem por concorrer pelo sistema de cotas raciais serão analisados por uma comissão responsável por avaliar presencialmente os “aspectos fenotípicos do candidato”, ou seja, características aparentes como cor de pele e de cabelo.

Até então, bastava a autoidentificação do candidato. O objetivo dessa segunda checagem seria evitar fraudes, isto é, impedir que pessoas que não são negras se apropriem dessas vagas. Em dezembro de 2015, o Ministério Público Federal apresentou uma ação civil pública contra cinco candidatos suspeitos de fraude na autodeclaração racial em um concurso para o Instituto Rio Branco, ligado ao Ministério das Relações Exteriores.

Criada em 2014, a lei 12.990 reserva 20% das vagas oferecidas em concurso públicos federais para pretos e pardos. A legislação tem validade de 10 anos e busca reduzir a desigualdade racial nas seleções para a administração pública.

A criação de comissões responsáveis por avaliar a veracidade da autodeclaração no sistema de cotas, porém, não é inédita. Há procedimentos semelhantes de checagem em universidades e também na administração pública. Na prefeitura de São Paulo, desde abril há uma comissão de análise, formada por membros da secretarias municipais de Promoção da Igualdade Racial, dos Negócios Jurídicos e de Gestão. Na capital paulista, há cotas raciais para concursos municipais desde 2014.

A mudança em âmbito federal, negociada por setores do movimento negro organizado ainda durante o governo de Dilma Rousseff, acabou publicada na gestão do interino Michel Temer, inflamando ainda mais o debate nas redes sociais. Por um lado, critica-se a necessidade da verificação fenotípica, isto é, das características aparentes do indivíduo. De outro, ressalta-se a necessidade de coibir as fraudes e de garantir que negros ocupem, de fato, as vagas reservadas pela ação afirmativa.

Para contemplar as diferentes opiniões acerca do tema, ouvimos representantes do movimento negro organizado, militantes e estudiosos das ações afirmativas sobre a aferição da autodeclaração:

“Entendemos que é dever do Estado fiscalizar essas ações para que não haja erro”

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Militantes da Educafro protestam no Ministério da Fazenda, em Brasília, em 2015

“Não tem como não ver como uma coisa positiva, justamente porque nós participamos ativamente da construção da resolução. Eu estudo numa universidade pública e é visível que tem pessoas que fraudam a autodeclaração para se beneficiar de uma política de ação afirmativa.

Nosso papel, enquanto movimento negro, é garantir que o Estado cumpra o seu dever de fiscalização. É importante dizer que quando houve o julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre as cotas raciais, a comissão de verificação já era uma previsão do acórdão sobre as cotas. Ou seja, foi declarado constitucional que tivesse uma verificação da autodeclaração naquela época. A nossa cobrança é que para essa comissão existisse de fato e não só como letra morta no papel.

O grande problema da autodeclaração é que ela fica à disposição de quem se autodeclara. Isso é um problema quando se trata de política pública, porque se você precisa efetivar os direitos das pessoas de forma especifica, como é o caso das ações afirmativas, é necessário que essa política atinja quem realmente é prejudicado na sociedade e é vítima do racismo.

Uma grande contribuição dessa comissão de verificação é trazer a referência ao fenótipo das pessoas, ou seja, pessoas com melanina acentuada, isso é importante porque o racismo no Brasil tem algumas características de perversidade. Nós, pessoas com pele mais preta, cabelo mais crespo e com mais traços associados à negritude, são mais vitimadas pela sociedade. E, existe uma enxurrada de estatísticas que demonstram esse fato. A política de ação afirmativa vem para corrigir isso.”

Danilo Lima, coordenador de juventude da ONG Educafro

“Em um País em que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, as pessoas sabem quem é negro” 

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Sancionada em 2014, a lei 15.939 assegura cota de 20% para a população negra em cargos efetivos e comissionados de órgãos municipais em São Paulo

“Antes de mais nada, não é uma ideia nova. Os comitês já existem em alguns estados e também aqui na prefeitura de São Paulo. É uma reivindicação do movimento negro, que percebeu que só a autodeclaração tinha um limite, já que havia pessoas brancas se declarando negras. O comitê é necessário como uma forma de manter a legalidade do processo, já que as pessoas fraudam. Por isso que percebeu-se que só a autodeclaração não era suficiente.

A política de cotas é necessária porque a sociedade é racista, então você precisa criar mecanismos de inclusão, mas se as pessoas negras não estão se beneficiando desse mecanismo, não faz sentido.

É bom frisar que o racismo no Brasil ele é pelo fenótipo – meu avô paterno era português, então por isso eu vou me declarar branca? Não faz sentido. Eu tenho fenótipo de negra e sou discriminada pela cor da minha pele e pela textura do meu cabelo. Então, o fato da pessoa tem um avô negro, mas ela é lida como branca, ela tem que entender que ela vai ter privilégios de pessoas brancas na sociedade.

O comitê, na verdade, é imprescindível para manter a finalidade da política de cotas. O problema nunca foi do movimento negro, isso é importante frisar. Aí depois a crítica vem para nós, dizendo que nós estamos criando um tribunal racial em vez de discutir as pessoas que fraudam o processo.

Viver num país em que o Rafael Braga está preso por conta de um Pinho Sol e em que há políticas de encarceramento em massa da população negra – isso é tribunal racial. Dizer quem é negro ou não é só uma forma de manter a legalidade do processo quando há pessoas brancas desonestas se declarando negras para acessar uma política de ação afirmativa. As políticas afirmativas existem justamente porque as pessoas negras não conseguem acessar esses espaços.

Direcionar a crítica para o movimento negro é extremamente desonesto. Acho que em um país em que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, as pessoas sabem quem é negro. Na hora de manter os lugares, essas dúvidas não existem. Elas só surgem quando tentamos criar políticas efetivas de combate ao racismo”

Djamila Ribeiro, pesquisadora na área de Filosofia Política e feminista. É secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.

“Temo que se abra um precedente para colocar as ações afirmativas em xeque”

“Eu não vejo como positivo. A primeira comissão montada na UnB causou também grande celeuma. No meio acadêmico, há quase um consenso que foi uma coisa errada. Por quê? Qualquer comissão para definir racialmente o candidato poderá utilizar critérios que, no limite, são políticos e não científicos.

A raça não existe cientificamente. No limite, é um critério político de definição. Raça é uma invenção, uma construção. Qualquer comissão que for constituída vai usar também critérios políticos e arbitrários. Do ponto de vista da antropologia, o critério utilizado é o da autodeclaração. É o utilizado, por exemplo, para demarcar comunidades remanescentes de quilombo.

A partir disso, eu entendo que o critério que deveria ser adotado seria o da autodeclaração. Do ponto de vista científico, esse número (de fraudes) é pequeno, residual. Não dá para pegar os casos isolados e vê-los como regra.

Eu defendo o sistema de autodeclaração, mesmo correndo os riscos de haver algum caso isolado que vai querer se beneficiar dessa política. O perigoso é partir dessa comissão todo o sistema de ações afirmativas e do sistema de cotas em especial perder credibilidade, ser colocado em xeque em função. O que eu temo é isso, que abra-se um precedente para que os opositores colocarem em que xeque a política em si”

Petrônio Domingues, professor no departamento de História na Universidade Federal do Sergipe e estudioso da história do movimento negro desde a década de 1990.

“Com as fraudes, percebemos que a autodeclaração não era suficiente”

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Protesto realizado pelo Coletivo Negrada na UFES contra fraudes na autodeclaração racial

“Em fevereiro deste ano, o Coletivo Negrada denunciou casos de fraude no sistema de cotas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). No entanto, o Ministério Público Federal do Espírito Santo arquivou a representação no âmbito criminal. O argumento é o de que na lei que normatiza a política de cotas para ingresso nas universidades federais e no edital do Vestibular da Ufes 2016 consta apenas a autoidentificação como critério para o candidato usufruir do sistema de cota racial.

A autodeclaração é um critério adotado no qual a população negra afirma seu pertencimento à identidade racial, pois aos afro-brasileiros essa identidade por muito tempo foi negada e subalternizada nas relações raciais. Com as fraudes, as declarações falsas de pessoas não negras que se autodeclaram negras, percebemos que este critério não é suficiente e precisa sim de mecanismos de fiscalização da autodeclaração para que a lei da reserva de vagas com o recorte racial seja cumprida e os direitos da população negra e indígena, garantidos.

Essa medida vem na perspectiva das demandas dos movimentos negros, onde também os coletivos de estudantes negros que atuam nas universidades têm denunciado as fraudes e pleiteado um mecanismo de fiscalização que coíba tais praticas.

A aferição, antes de tudo, precisa garantir os direitos dos verdadeiros alvos da lei de reserva de vagas. Estamos falando de uma lei que vem para equiparar as condições de acesso dadas a população branca à população negra e indígena. No Brasil, quando é para negar direitos, não há dúvidas de quem são estes, exigimos que nossos direitos também sejam garantidos. A composição da comissão deve ser idônea e estar de acordo com isso.

Acredito que as fraudes nas autodeclarações estão ocorrendo com total consciência e intenção de burla a lei, não estamos falando de pessoas “negras de pele clara”, mas principalmente de pessoas que pertencem a identidade racial “branca”, que se beneficia dela no cotidiano e como se não bastasse, também quer usurpar o direito alheio.

É preciso antes de tudo reconhecer e conhecer os aspectos históricos e sociais da formação do Brasil e da construção da identidade brasileira, que marginalizam em sua maioria a população negra e indígena e que até então não usufruem dos mesmos direitos.”

Mirts Sants, membro fundadora do Coletivo Negrada, organização de estudantes e professores negros e negras no Espirito Santo.

 “As cotas desafiam a todos nós a criar novos caminhos”

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Frei David, representante da Educafro, na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, em 2015 

“Esse é um assunto muito novo para toda a realidade brasileira, negros e brancos, e especialmente para o governo e para a justiça. Portanto, para canções novas, ouvidos novos, é o que diz o ditado popular. Nós, afro-brasileiros, somos 53,7% do Brasil, mas a lei de cotas só oferece 20% (das vagas)”. Frente ao volume grande de pessoas afrobrasileiras, para nós é razoável que primeiramente sejam contemplados os pretos e os pardos-pretos. Os pardos-pardos e os pardos-brancos serão contemplados depois que os pretos e pardos-pretos estiverem contemplados. Aí reside a chave do desentendimento.

A Educafro, de 2000 a 2010, defendia radicalmente que o critério único deveria ser a autodeclaração, porque a entidade percebia que de cada 100 afrobrasileiros, 80 tinham vergonha de se definir como tal. Ora, até então no Brasil, negro levava a pior. Com a lei das cotas, pela primeira vez, ser negro é vantagem, então, nós entendíamos que autodeclaração iria ajudar aqueles 80% de afrobrasileiros que estavam no meio do caminho de assumir sua negritude.

Daí nosso susto ao ver que alguns brancos e pardos-brancos passaram a ver a lei como uma oportunidade de gerar fraudes. É o caso do Itamaraty, em que um branco de olhos verdes que pegou sua bisavó negra para roubar a nossa vaga.

As cotas não estão preocupadas com a genotipia, mas unicamente compromissadas com a fenotipia. Portanto, não adianta você falar que tem avós ou bisavós negros para querer ter o direito que você não têm porque não é vítima de racismo.

Nós entendemos que o Brasil nunca levou a sério o problema do negro. Quando agora aparecem as cotas, elas encontram todos os órgãos desorganizados: justiça sem clareza, os administradores público e nós do movimento social sem clareza do que fazer. As cotas desafiam a todos nós a criar novos caminhos e novas pistas.

Portanto, esse é o momento mais rico que temos no Brasil, onde todos nós estamos trabalhando intensamento para buscar caminhos. Ninguém tem a verdade. De agora até setembro, teremos uns 10 concursos públicos, que serão o suficiente para saber onde estamos acertando e errando.”

Frei David Santos, da ONG Educafro

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