Na EMEI João Theodoro, uma criança boliviana brinca de bambolê pela primeira vez com sua mãe. Enquanto isso, um pai também boliviano ensina como se joga pião em seu país, para espanto do pai brasileiro e das demais crianças. O tio de uma das crianças faz a meninada rodopiar em um gira-gira e um pai sírio pesquisa no Google qual a tradução de “bolas de gude” para ensinar como se brinca em seu país. Por toda a parte e por todo o páteo, crianças devolvem sorrisos ao verem seus familiares envolvidos em seu brincar.
As cenas acima apresentadas aconteceram ao cabo do processo do Brinca Mundo, uma das estratégias do “Projeto Integração Família-Rede Socioeducativa”, realizado durante maio de 2016 pelo programa Cidades Educadoras, da Associação Cidade Escola Aprendiz, para fomentar a integração de crianças e famílias migrantes com a instituição escolar. Ao lembrar que a brincadeira é uma linguagem universal – variam-se os jogos, os modos, e as formas, mas todo o mundo em algum momento já brincou -, o projeto conseguiu criar um terreno comum para conversas entre toda a comunidade escolar, ao ativar, através do livre brincar, as memórias mais antigas e carinhosas de cada um.
A escola, localizada no bairro do Bom Retiro, em São Paulo – conhecido por abrigar pessoas de diversas nacionalidades -, tem no seu corpo discente um grande número de crianças imigrantes ou filhas de imigrantes. “O bairro tem um fluxo migratório muito grande, mas isso não pode ser romantizado. A troca cultural não se dá sem atrito e muitas vezes reproduzimos estereótipos sobre essas crianças”, afirma Jéssica Moreira, articuladora comunitária que, junto à Dayana Araújo, gestora do projeto, desenvolveu a proposta do Brinca Mundo.
Saiba como aconteceu essa experiência, quais foram as estratégias adotadas e quais seus resultados.
#1 Como começou?
A articulação começou com um conversa dentro da escola, mas também poderia ser realizada em qualquer território ou ambiente, ressalta Dayana. “Antes de fazer qualquer coisa é preciso entender as pessoas que estão ali, qual o projeto pedagógico, as questões dos territórios e qual o plano dos professores. Não adianta chegar dizendo o que tem que ser feito sem ouvir”, explica Jéssica. “A escola, por exemplo, muitas vezes é fechada, então prepare-se para os desafios. Não vai ser tudo as mil maravilhas e é preciso paciência e escuta.”
#2 Escolha do brincar
A escolha do brincar como tema dialoga diretamente com o projeto pedagógico desenvolvido pela escola, mas as educadoras afirmam que levaram “um cardápio de possibilidades” com referências de projetos já existentes no Brasil e no mundo, passando por cultura, gastronomia e história, entre outros assuntos, para inspirar as professoras. Ainda assim, Jéssica e Dayana ressaltam que a escolha do tema não poderia ter sido mais oportuna. Além de ser um direito, o brincar também ajuda a promover o desenvolvimento integral, físico e motor das crianças, e potencializa as oportunidades de integração.
“O brincar colabora com a vinculação à cultura na qual a criança está inserida, por isso, é tão importante para este projeto, uma vez que meninas e meninos de variadas nacionalidades e diferentes línguas interagem uns com os outras por meio do brincar, que se torna uma língua universal e meio de aprender sobre os costumes e culturas diversas”, acredita Dayana.
#3 Escutar a escola
A questão da escuta é primordial no caso da experiência na EMEI João Theodoro. Para sensibilizar a equipe escolar, foi realizado um processo de mapeamento sobre como as professoras brincavam quando eram crianças. “Quando você pergunta para uma professora do que ela brincava, é algo muito especial. Você abre uma chavinha de algo que está congelado, para ela lembrar de algo muito caro, que é a sua infância. E toda brincadeira acontece em uma rua, em uma cidade, em um país. É uma forma maravilhosa de puxar tudo isso para a mesa de conversa”, afirma Jéssica.
Veja o formulário usado para o processo de escuta:
#4 Escutar as famílias
Nem todo mundo guarda em si as danças, histórias, folclores e tradições de seu local de origem. Mas todo mundo brincou inserido nesses contextos. Após escutar a escola, foi hora de saber do que brincavam os pais. Para isso, foi montado, ao longo de três dias, uma barraquinha na frente da EMEI, no horário de entrada e saída das crianças, no qual era distribuído o mesmo formulário usado com os professores e professoras. Também foi feito um processo de escuta oral que posteriormente foi sistematizado.
“Escutamos muito que os pais não iam deixar suas rotinas para ir na escola, então começamos agindo no momento em que eles estão levando seus filhos. A ideia da escuta já é um passo nessa sensibilização, mostrar que o que acontece ali tem sentido”, relembra Dayana. Além disso, também gravaram depoimentos dos pais sobre como era o seu brincar e isso foi transformado em um mini documentário, exibido durante o festival de brincadeiras do Brinca Mundo (confira abaixo).
#5 Mapeamento de coletivos
Para realizar o festival Brinca Mundo, as articuladoras buscaram coletivos e pessoas do territórios que já reúnem saberes sobre o brincar para ajudar com as atividades. “Valorizar as pessoas que realizam trabalhos na região é essencial. Às vezes tem um morador, uma professora aposentada, um coletivo de brincadeiras, alguém que brinque com as crianças, um Centro da Criança e do Adolescente (CCA) que pode auxiliar. O nosso minidoc foi editado em um regime de colaboração com uma organização do território”, recorda Dayana. “O mais importante é encontrar pessoas que vejam sentido no processo”, completa Jéssica.
#6 Brinca Mundo
Os dias da ação foram marcados dentro do calendário da Semana Mundial do Brincar, que, em 2016, aconteceu entre 23 e 25/5. A divulgação foi feita diretamente com os pais e contou com a distribuição de cartazes e folhetos na escola e no território. Para quebrar a rotina e facilitar a participação, as atividades sempre aconteciam no horário de chegada e saída da escola. A ação consistiu na montagem de brinquedos coletados a partir da escuta ou que partissem dos coletivos (como Massacuca, Não só o Gato e Aqui que a gente brinca), que foram chamados para auxiliar no processo, criando espaços de livre brincar entre crianças e adultos da escola. Também foi exibido o minidoc com o relato dos familiares sobre suas brincadeiras.
Uma semana de mobilização promovida por todos os núcleos da Aliança pela Infância no Brasil e nos municípios parceiros que compartilham conosco suas experiências. São manhãs e tardes de brincadeiras abertas para a comunidade, palestras e ciclos de debates, sempre com o tema do brincar, realizados graças a uma série de articulações. Saiba mais no site da Semana Mundial do Brincar.
“Percebemos que a autoestima das crianças crescia muito quando elas viam seus familiares envolvidos na brincadeira, no espaço escolar, brincando de corrida do saco, de gira-gira. Elas tinham autonomia para brincar do que quisessem e tentamos propor que a mediação e a negociação das brincadeiras fossem feitas entre elas”, afirma Dayana. “Muitas vezes essas atividades de integração são feitas em tom assistencialista, com bala, gincana e algodão doce, mas realmente acreditamos que essa atividade não subestima a dignidade dessas pessoas – pelo contrário, promove suas identidades e saberes”, completa Jéssica.
#7 Resultados
A série de atividades, ações e escutas conseguiu atrair 57 familiares para as atividades escolares, aumentou o sentimento de pertencimento dos estudantes com a escola, ajudou a inventariar novas brincadeiras e mostrou que não é preciso falar a mesma língua para promover o diálogo intercultural.
Dayana também ressalta o caráter público da atividade, reforçando a ideia de que a escola é um espaço público que deve ser ocupado. “Partilhar o espaço, fazendo algo que faz sentido para os pais e para a escola, gera uma transformação potente em cada sujeito. Todo mundo aprende alguma coisa, as professoras e diretoras aprenderam muito com pais e coletivos. É uma prova da importância de trazer novos sujeitos para o ambiente educativo, salientando o papel da escola como agente de transformação no território.”