Nesta quinta-feira (4), a Faculdade de Direito da USP sediou o seminário “Caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes vs. Brasil: Reflexões sobre a Sentença da Corte Interamericana contra o Brasil”. Realizada em parceria entre Geledés – Instituto da Mulher Negra e a Escola da Defensoria Pública de São Paulo, a atividade reuniu especialistas, juristas e representantes do movimento negro para debater a sentença histórica, publicada em 20 de fevereiro de 2025, que responsabiliza o Estado brasileiro por violação de direitos humanos, por discriminação no mercado de trabalho de Neusa dos Santos Nascimento e Gisele Ana Ferreira Gomes.
O processo foi submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em dezembro de 2003 e culminou, após quase 18 anos de tramitação, em uma decisão publicada em 7 de outubro de 2024. A lentidão, por si só, é sintoma da falência de um sistema que proclama a igualdade, mas demora quase duas décadas para reconhecer o óbvio: o racismo estrutural atravessa o acesso à justiça no Brasil.
Rodnei Jericó, advogado que atuou por 20 anos no SOS Racismo de Geledés – Instituto da Mulher Negra, destacou a negligência do Ministério Público brasileiro, citado nominalmente na sentença. Segundo ele, “o Estado pecou tanto pela ação quanto pela omissão”. O Judiciário paulista chegou a ser notificado para atuar, mas permaneceu inerte.

O advogado lembrou que a esfera internacional não deve ser confundida com uma “quarta instância” para casos mal resolvidos no país. O recurso à Comissão e à Corte é um caminho excepcional, acionado quando as instituições nacionais falham. E falharam: Em 2003 o caso ainda tramitava em segunda instância no Brasil, incapaz de oferecer respostas às vítimas.
Em seu relato pessoal, Jericó revelou a dimensão humana da batalha: “Na véspera das alegações orais, eu estava tão nervoso que rasguei o texto e fiz outro às quatro da manhã. Mas, no tribunal, quando a perita do Estado reconheceu que no Brasil o racismo estrutural opera, pensei: é tudo que eu preciso”.
O peso das organizações negras

O julgamento expôs o contraste entre a omissão dos órgãos oficiais e a perseverança das organizações negras. “A assistência jurídica gratuita prestada por organizações da sociedade civil é decisiva para que pessoas negras tenham acesso à justiça”, frisou a doutora Maria Sylvia de Oliveira, diretora de Geledés.
Ela recordou que o SOS Racismo denunciou a negligência do Estado brasileiro à Comissão Interamericana em dezembro de 2003. Desde então, o caso percorreu um longo trâmite: relatório de admissibilidade em 2006, relatório de mérito em 2020 e sucessivas prorrogações concedidas ao Estado, que permaneceu inerte. “Mesmo após um ano da notificação, o Brasil não apresentou avanços substantivos. Por isso, em julho de 2021, a Comissão levou o caso à Corte Interamericana”, resumiu.
A própria Corte sublinhou que a noção de igualdade decorre da dignidade da pessoa humana, impondo aos Estados a obrigação de combater discriminações históricas. Mas, sem a pressão do movimento negro, a sentença não teria sido alcançada.

Eunice Prudente, advogada e professora da Faculdade de Direito da USP, sintetizou: “Esse momento traz à tona a importância do movimento social e do movimento negro. O direito brasileiro ainda não reconheceu devidamente a contribuição do movimento negro aos direitos sociais. O Judiciário segue ineficiente e racista. Já faz mais de 30 anos que a Constituição proclama um Estado Democrático de Direito. Então, onde é que nós estamos?”.
Os participantes da mesa lembraram que Thula Pires atuou como perita da sociedade civil.Para o professor de Direito Constitucional da UFRJ, Siddharta Legale, o reconhecimento formal pela perita indicada pelo Estado, da existência do racismo estrutural no Brasil, abre espaço para o que chamou de “letramento racial”: sem ele, nem brancos nem negros conseguem enfrentar o racismo epistêmico que contamina as instituições. “Quando, em um Tribunal de Justiça, durante 30 anos, uma lei não é aplicada, tem algo de errado. Isso é uma falha estrutural gravíssima”, afirmou
Para Legale, o problema não está na falta de produção do movimento negro, que há 70 anos traduz esse enfrentamento, mas na ausência de incorporação das perspectivas antirracistas no ensino tradicional. “É o que se chama de racismo epistêmico”, concluiu.
O paradoxo da prova
Neusa dos Santos, presente no seminário, destacou o caráter pedagógico da decisão: “Uma das grandes importâncias foi atingir a jurisprudência. A sentença determinou que não cabe à vítima o ônus da prova em casos de racismo. Mesmo assim, até hoje somos questionadas se temos provas”.
O paradoxo é brutal: a Corte afirma a inversão do ônus, mas as vítimas seguem submetidas à mesma exigência impossível de cumprir — demonstrar, em juízo, aquilo que a realidade social grita diariamente.
O seminário deixou claro que a condenação internacional do Brasil é, ao mesmo tempo, uma vitória incontestável das vítimas e do movimento negro e um espelho incômodo para o Estado.
A sentença expõe que a igualdade, tão proclamada em discursos oficiais, continua sendo letra morta diante da realidade do racismo estrutural. O Ministério Público foi negligente, o Judiciário se manteve moroso, o Estado se omitiu.
Mais uma vez, coube à sociedade civil organizada, sobretudo ao movimento de mulheres negras, sustentar a luta por dignidade e igualdade de direitos. Como lembrou Rodnei Jericó: “Temos poucos aliados nessa pauta, mesmo hoje”.
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