Conheça a luta de famílias pobres afetadas pelo Zika no Supremo Tribunal Federal

Maria Carolina e Joselito vivem em um sítio em Esperança, no sertão da Paraíba. Têm um filho de dois anos. Em fevereiro, enquanto a Organização Mundial de Saúde anunciava uma emergência de saúde pública de importância internacional diante das desordens neurológicas causadas pelo vírus zika, nascia a segunda filha do casal. Gabriela é uma bebê da primeira geração de crianças afetadas pela síndrome congênita do zika. O pré-natal e parto de Gabriela foram marcados por negligência de serviços de saúde e violência obstétrica, mas também pela força de Carolina e Joselito na defesa dos direitos da filha. A família narra a luta no blog.

Por Sinara Gumieri, do Justificando 

Maria Carolina e Joselito conseguiram acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para a bebê Gabriela. O BPC é a garantia de um salário mínimo mensal para idosos acima de 65 ou pessoas com deficiência de longo prazo, que afete suas condições de participação social plena. A Constituição Federal de 1988 prevê o BPC como um direito de assistência social que deve ser garantida “a quem dela necessitar”. Mas os requisitos legais atuais exigem que, para ter direito ao BPC, a família tenha renda per capita menor do que R$ 220 mensais. Por isso, se Carolina ou Joselito conseguem um trabalho e passam a conciliá-lo com o cuidado das crianças pequenas, Gabriela perde o direito ao BPC.

Além disso, sob o pretexto de enfrentar a epidemia, o governo recentemente aprovou a Lei 13.301/2016, que restringe o direito ao BPC de crianças afetadas pelo zika pelo prazo de três anos. Joselito se inquieta pensando na lei: as necessidades de saúde da bebê Gabriela são muitas e permanentes; por isso, quando a lei diz que ela terá direito ao BPC por só três anos, o pai se pergunta se o prazo é porque o governo antecipa cura para breve, ou porque já tem data marca para abandonar completamente essas crianças e suas famílias.

Conta não fecha

As contas de famílias como a Carolina e Joselito não fecham ao final do mês, e a Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP) sabe disso. Por isso, a ANADEP apresentou ao Supremo Tribunal Federal (STF) a ADI 5581, com uma série de demandas de direitos de acesso à informação, planejamento familiar e proteção social a famílias afetadas pela epidemia do vírus zika. Fernando Gaiger Silveira, especialista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) ouvido pela ANADEP em parecer juntado à petição inicial da ação, explica que necessidades de crianças como Gabriela geram “gastos catastróficos em saúde” para suas famílias.

Já estando em situação de vulnerabilidade por uma epidemia que afeta principalmente mulheres nordestinas, negras e pobres, famílias como a de Carolina e Joselito são ainda mais empobrecidas por tentar cuidar de seus bebês: garantir que tenham alimentação adequada e roupas, que possam chegar aos serviços de saúde para as sessões de estimulação precoce, que tenham remédios para crises convulsivas e óculos especiais para problemas de visão, e tudo isso com R$ 880 mensais para uma família de quatro pessoas. Por isso, a ANADEP pede que o STF garanta acesso universal de famílias afetadas pelo zika ao BPC, sem requisitos de renda máxima.

A relatora da ação, Ministra Cármen Lúcia, pediu que a Advocacia Geral da União (AGU), a Procuradoria Geral da República (PGR), o Senado Federal e a Presidência da República se manifestassem sobre os pedidos da ANADEP. A posição da PGR em defesa dos direitos à assistência social das famílias afetadas por uma epidemia provocada pela negligência estatal em controlar o mosquito vetor é clara: “Mensuração da renda familiar é critério inadequado para concessão do BPC em caso de pessoa com síndrome congênita do zika, porquanto a vulnerabilidade dessa parcela populacional e de seus familiares é notória, dados os impactos financeiros, sociais e psicológicos dessa condição, como perda de emprego, separação do casal, abandono do lar, diminuição de renda e gastos elevados com tratamentos para pessoa com deficiência”.

Já a AGU, o Senado e a Presidência da República discordaram da ANADEP: acham que a resposta à epidemia do zika está bem e suficiente. Mas o Senado foi além: pediu respeito às decisões dos poderes públicos, e sugeriu que os pedidos das famílias que querem condições minimamente dignas para cuidar de suas crianças são uma ameaça às finanças do país, já que “é notório que o País atravessa uma das piores crises econômicas de sua história e, portanto, é especialmente necessário e prudente ser cuidadoso com medidas que possam sobreonerar os já combalidos recursos do erário nacional”.

Fizemos as contas: o que se considera abuso nos gastos do Estado é um benefício de um salário mínimo que, pago às 1.845 famílias já confirmadas para síndrome neurológica do zika em seus filhos, representaria no máximo 0,00088% do PIB nacional e, mesmo se por hipótese fosse pago a todas as 9.091 famílias notificadas, apenas chegaria a 0,0043% do PIB. O salário atual de um único senador equivale ao pagamento do BPC para 18 famílias como a de Carolina e Joselito. O Senado dá uma resposta inconstitucional para a inconstitucionalidade à qual famílias como a de Gabriela buscam sobreviver: determinam que a desigualdade tem que esperar.

Sinara Gumieri é advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica

SOBRE O AUTOR

Sinara

Advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.

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