“Consciência humana”, consciência de ninguém – por Robson Fernando de Souza

por Robson Fernando de Souza

Nas proximidades de cada Dia da Consciência Negra (20 de novembro), tem sido divulgada uma infame frase: “Não precisamos de um dia da consciência negra, branca, parda, amarela, albina etc. Precisamos de 365 dias de consciência humana.” Outras pessoas, por sua vez, dizem que “não existem” racismo, lesbo/bi/homofobia, transfobia, machismo/misoginia, intolerância religiosa etc., mas sim “humanofobia”, uma alegada categoria de violências que poderiam ser supostamente cometidas contra qualquer ser humano. Quem tem o mínimo de conhecimento sobre opressões contra minorias políticas sabe que essa ideia de “consciência humana” e a crença na “humanofobia” nada mais são do que uma ausência de consciência empática.

A “consciência humana”, longe de realçar a necessidade de livrar o mundo da violência e da opressão, comete absurdos. Por exemplo, anula a existência das desigualdades raciais, de gênero e identidade de gênero, de orientação sexual etc. e nega a ocorrência das agressões motivadas por preconceito e dos crimes de ódio, rebaixando estes últimos como crimes “comuns” sem nenhuma motivação em função de aversão de raça, orientação sexual, (identidade de) gênero, religião etc. É semelhante a rebaixar a tortura de prisioneiros políticos à qualidade de crime de lesão corporal comum.

Para os defensores dessa falsa consciência, um negro em determinada situação não foi morto pela polícia por racismo, mas sim porque era simplesmente um ser humano que estava no local errado e na hora errada; um casal gay foi torturado e morto, mesmo com visíveis indícios de crime de ódio homofóbico, por uma suposta aversão indistintamente misantrópica dos autores do crime; e não há machismo e misoginia quando, diante de casos de estupro noticiados na mídia, uma parcela nada pequena da população tenta culpar a vítima por ter sido violentada e inocentar o estuprador.

Da mesma forma, segundo essa ideologia, negros não são ofendidos nem esnobados por empresas em favor de brancos, seja como clientes ou como candidatos a emprego, por motivações racistas; adjetivações depreciativas como “viado”, “baitola”, “sapata nojenta” ou “pederastas pecaminosas(os)” não teriam motivações lesbofóbicas e homofóbicas; nem haveria uma cultura quase generalizada de transfobia matando travestis e transexuais por assassinato ou indução ao suicídio, nem negando o direito de pessoas trans de serem quem elas próprias sabem que são. Tudo seria motivado por um vago, difuso e extremamente abstrato “ódio ao ser humano”, ou por aleatoriedade ou por um puro e individual desvio de caráter da parte do criminoso.

E também, graças a essa crença na “consciência humana” e na “humanofobia”, desaparecem por completo as raízes históricas de panoramas tradicionais de desigualdade social e discriminação cultural. É como se não existissem, por exemplo, as enormes desproporções entre os percentuais de negros e brancos na população total brasileira e a distribuição dessas pessoas em empregos subalternos (maioria de negros), empregos hierarquicamente elevados (grande maioria de brancos), mandatos e cargos em posições nos três poderes (grande maioria de brancos), habitantes de comunidades muito pobres (grande maioria de negros), moradores de bairros “nobres” (grande maioria de brancos) etc.

Também acaba ocultada por essa pseudoconsciência a existência de papéis de gênero que relegam a mulher a “funções” de subordinação e submissão, a um estado de privação de liberdade, à extrema vulnerabilidade a crimes de violência doméstica ou assédio sexual, à relegação à qualidade de brinquedo sexual ou motivo de repulsa masculina etc. Tanto os problemas de relações raciais como os de relações de gênero são forçadamente tornados meros problemas de cunho individual, “casos isolados” que magicamente se resolveriam sozinhos sem a intervenção do feminismo e do movimento negro.

E um outro problema muito sério nisso é cancelar e censurar o empoderamento de pessoas pertencentes a essas minorias. É calar, por exemplo:
– o orgulho negro como maneira de os negros resistirem às agressões racistas e à exclusão social e cultural dos negros e evitarem sentir vergonha de sua cor;
– a autoafirmação feminina como maneira de fazer as mulheres não caírem em depressão perante o  machismo e a misoginia que sentem na pele e, ao invés, reagirem com autoridade contra os machistas e misóginos que julgam de forma objetificadora ou condenadora seus corpos e/ou as tratam como bens públicos disponíveis à disposição dos homens ou propriedade privada de um homem;
– a determinação das pessoas trans em busca do respeito incondicional à sua identidade de gênero e sua dignidade;
– o orgulho dos afrorreligiosos, dos pagãos, dos ateus, dos judeus etc. de serem quem são e crerem no que creem e sua luta em exigir que a maioria cristã os respeite e não lhes julgue o caráter em função de suas crenças; etc.

Isso tudo, entre vários outros problemas, mostra que defender a demasiadamente genérica e vaga “consciência humana” e a suposta oposição à igualmente imaginária “humanofobia” passa muito longe de colaborar com o desenvolvimento de uma sociedade igualitária onde todos os seres humanos sejam tratados com o mesmo respeito, os mesmos direitos e a devida proporcionalidade representativa nos diversos espaços sociais.

Muito pelo contrário, contribui para a perpetuação de todas as desigualdades, preconceitos, intolerâncias e violências motivadas por ódio contra minorias, sem exceção. Tem o mesmo efeito de desconsiderar as causas de fundo social de crimes muito frequentes, como assaltos de rua e tráfico de drogas, e exigir punição para seus autores sem que nada seja feito para evitar que mais pessoas em situação de risco social “optem” por praticá-los.

No fundo, essas ideias só servem para deixar pessoas em posição dominante se sentirem mais confortáveis com seus privilégios e preconceitos. Afinal, por exemplo, a negação, por um branco, da existência do racismo lhe permite acreditar que não foi agraciado com privilégios pela sociedade em que vive, como o de não ser visto na rua como potencial bandido, ter acesso mais fácil a cursos universitários de prestígio elevado e empregos de alta posição hierárquica, ter chances muito maiores de vir a morar um dia num bairro de classe média-alta e uma probabilidade muito menor de ser assassinado na rua por policiais ou por criminosos civis etc.

E também o inocenta de estar incorrendo em desvio de caráter e de ética ao eventualmente tratar negros de forma negativamente diferenciada dos brancos, apoiar a repressão policial contra “rolezinhos” de shopping promovidos por negros pobres enquanto acha “bacanas” as “farras” envolvendo aglomerações de brancos de classe média, rir de piadas que depreciam e inferiorizam os negros etc.

O fato é que forçar uma substituição imaginária do racismo, do machismo, do heterossexismo, da transfobia, da intolerância contra não cristãos etc. pela abstração genericizada da “humanofobia” e silenciar o orgulho das minorias em favor de uma imaginária “consciência humana” só serve aos dominantes e aos preconceituosos, incluídos os autores de crimes de ódio. Não serve em nada às minorias políticas vítimas de opressão – pelo contrário, cala o sofrimento, a autoestima e as demandas das pessoas que a elas pertencem. Longe de acabar com as relações de dominação e os preconceitos, forja para a sociedade uma máscara de provedora de igualdade universal de condições para encobrir sua verdadeira face opressora, hierárquica moral e segregadora.

Sabendo-se desses tantos problemas e interesses escusos inerentes ao seu uso, é difícil não perceber que a “consciência humana” é na verdade uma consciência de ninguém. Aliás, é a ausência de consciência do ser humano das categorias dominantes perante as opressões que historicamente têm marcado, há milênios, a vida dos dominados.

Autor: Robson Fernando de Souza

Fonte: Consciencia.blog.br

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