Consciência Negra: Uma entrevista com Benedita da Silva

 

A história de Benedita da Silva na política é longa e cheia de conquistas. A primeira vereadora negra do Rio de Janeiro foi também a primeira mulher a governar o estado. Benedita foi senadora e hoje é deputada federal pelo PT. Sua luta contra a discriminação racial sempre esteve em evidência, especialmente no último 20 de novembro, Dia da Consciência Negra no Brasil, em que Benedita nos concedeu esta entrevista esclarecedora sobre a data e os avanços da conquista por mais espaço dos negros, em uma sociedade que ainda despreza princípios básicos de igualdade. Se esta luta terá fim? Benedita não hesita em responder que sim. O pai a ensinou bem: “Quando um negro se liberta, liberta milhões!”.

 

Marcone Formiga – A Mangueira ainda é um morro que a senhora carrega consigo?

– Minha família é uma das mais antigas do morro do Chapéu mangueira, então eu o tenho dentro de mim. Não é demagogia, mas quem mora num determinado bairro por muitos anos, sabe o que estou falando. No Chapéu eu cresci, eduquei meus filhos, netos… Não sei como viveria se não pudesse voltar à Mangueira.

Marcone Formiga – Como foi que a política partidária foi entrar na sua vida?

– Tem uma história anterior, a dos meus pais. Minha mãe lavava roupa para o Juscelino, quer dizer, tinha uma relação com políticos e nós nos interessávamos por essa questão política. Meus pais eram do PTB e eu fui crescendo em meio aquilo e me interessei também. Sempre fui uma oposição tremenda.

Marcone Formiga – “Hay gobierno, soy contra”…

– Não era uma questão de governo, era uma coisa mesmo de estrutura familiar. A cultura familiar é uma cultura muito autoritária e eu nasci com espírito de independência e de liberdade muito grande e questionava meus pais. Questionava o comportamento da relação de pais e filhos e isso me fez um pouco mais independente das minhas irmãs, dos meus irmãos. Então fui para um partido de oposição. Tive a minha inscrição no MDB, na época da ditadura. Depois, quando houve o desmembramento dos partidos, fiquei com o Partido dos Trabalhadores. Estou desde a fundação do PT. Ajudei na formação do partido. Foi importante, porque já existia dentro de mim todo um espírito de solidariedade que, traduzido, era um espírito socialista com o qual o PT contribuiu. Ele foi a via pela qual tive a oportunidade de expressar minhas ideias e de aproveitar melhor o trabalho, pois eu já tinha um trabalho político, comunitário, com as mulheres, crianças, de alfabetização, o trabalho com os negros. Tinha um contato muito grande com a comunidade e por isso me envolvia politicamente. Isso me cacifou para chegar no PT em condições não só de ajudar a construir esse partido, mas de sair candidata mais adiante. Em 1982 o partido teve seu registro e participou das eleições que me elegeram vereadora.

Bruna Soares – O que marcou o início de sua carreira política?

– O que me levou a entrar na política foi a indignação que tinha com tamanha miséria e preconceitos com o negro – um verdadeiro apartheid. Eu vim de uma favela e passei por tudo isso. Vi cidadãos negros sem direitos, discriminados. Quando me afiliei a um partido político, pude começar a falar sua língua, que se liga aos trabalhadores e batalhadores do Brasil. Com este respaldo, fui a primeira vereadora negra no Rio. Iniciei assim uma luta a favor dos empregados negros, com políticas pertinentes que lhe dessem a voz merecida, pois somos absolutamente todos iguais.

Marcone Formiga – Entre a Escola Francisco Alves e o primeiro mandato de vereadora, é verdade que a senhora chegou a trabalhar como cozinheira?

– Eu fui tanta coisa… Trabalhei na feira, em fábrica, como doméstica. Na minha época, você entrava para brincar com a criança e acabava com a responsabilidade de cuidar de todo o trabalho de uma casa. Depois, mais adulta, casada e com filhos, trabalhei, trabalhei muito, muito. Sou do tempo do escovão, aquela coisa pesada que você tinha que puxar de um lado para o outro. Sou do tempo também do ferro de carvão. Carregava muito peso e era uma pessoa que não tinha o direito de se cansar.

Marcone Formiga – Como é que Benedita, que carrega Silva no nome, nasceu pobre e negra, chegou ao governo do Rio de Janeiro?

– Dificilmente os Silvas da vida são conhecidos. Sou privilegiada neste contexto, mas não cheguei lá sozinha. Cheguei com toda uma história, uma história de família, uma história de amigos, uma história de partido, uma história de “dar as mãos”. Então não estive lá porque queria sucesso. Claro que existe toda uma vaidade interior, daquilo que você tem, que eu nem chamaria de vaidade, mas de poder perceber que as coisas estão dando certo, depois de darem errado. Foram tantas vezes, foi tão difícil, mas a gente chega lá. Parece que foi fácil, mas sei que não foi.

Bruna Soares – Dentre suas importantes posições no governo brasileiro, em qual sentiu mais abertura para seus projetos?

– Acho que enquanto governadora, pois enquanto ministra trabalhava mais com as questões programadas para aquele setor. Como governadora do estado do Rio de Janeiro, pude me voltar mais à questão racial e perfeitamente executar políticas, ações e programas para homens e mulheres negros, para comunidades quilombolas, enfim, para todos de uma forma mais palpável e prática.

Marcone Formiga – Deve ter trabalhado muito…

– Com certeza. Olho para frente e digo: “Dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”. Às vezes olho para trás e vejo que realmente é esta a história. Hoje faço política com muito amor, com muito carinho e jamais vou estar em qualquer função política, seja no Legislativo ou no Executivo, com a minha consciência me acusando de que cheguei ali porque pisei em alguém. Não, pelo contrário. Só acredito que possa chegar em qualquer outro lugar se continuar sendo o que sou e continuar contando com as pessoas.

Marcone Formiga – A senhora teve outros casamentos antes do atual e enviuvou duas vezes, não é isso?

– Enviuvei duas vezes e não vou enviuvar a terceira porque o Pitanga já morreu em “A Próxima Vítima” e já chegou em casa me dizendo: “Fiz a minha parte. Então você faça a sua. Você já matou dois”. Mas não, foram companheiros maravilhosos, tive vidas diferentes com cada um deles. Tenho filhos só com o primeiro.

Marcone Formiga – Como era o nome dele?

– Era Newton da Silva, também um ex-menino de rua. Era de Macaé, do Rio de Janeiro, perdido na capital. Quando nos casamos já estava com quase 15 anos sem ver a mãe, sem saber dela. Aí nos encontramos, nos ajudamos, casamos e tivemos nossos filhos. O segundo também era amigo, amigo da família. Éramos muito amigos.

Marcone Formiga – Quantos anos de casamento com Antônio Pitanga?

– São 20 anos. Pitanga é uma pessoa maravilhosa. É muito interessante: ele é um dos poucos negros que fizeram tantos filmes. Mais de 80!

Marcone Formiga – Como é a relação da senhora com a família dele?

– A relação é muito boa entre nós porque ninguém tem sequer tempo para brigar um com o outro. É cada um para um lado. Não tem tempo. É uma relação boa, a gente se encontra, a gente conversa quando pode, falamos por telefone mais do que pessoalmente. Tem uma coisa muito bonita, na Camila (atriz) e no Pitanga, porque o Pitanga criou a Camila e o Ruco. Ele se separou e criou os filhos, mas nunca deixou de cuidar da Vera, a mãe da Camila e do Ruco.

Bruna Soares – Sobre a questão racial.  Qual é o perfil daquele que não respeita os negros?

– Há preconceitos conscientes, que desrespeitam mesmo sem nenhuma consideração seus próprios conterrâneos. Há também preconceitos inconscientes, daqueles que acabam sendo vítimas de um senso comum que coloca o negro como ser inferior. Vivemos ainda, infelizmente, numa cultura da Casa Grande e da senzala. Há uma usurpação do que identifica etnias, gêneros. O desrespeito chega também até o campo profissional, onde vemos negros trabalhando nas mesmas funções de brancos, ganhando, porém, muito menos como salário. Isso inclusive em cargos altos, de iniciativa privada. E por quê? Todos têm qualificação!

Marcone Formiga – O Brasil é mesmo um país racista?

– Nossa, põe racista nisso. Posso falar de cátedra porque, mesmo tendo chegado aonde cheguei, sou vítima de preconceito. Apesar da miscigenação de raças, o brasileiro discrimina o negro. Já é hora de mudar, não é? Basta de racismo!

 

Bruna Soares – O feriado de 20 de novembro foi considerado inconstitucional no Paraná, nas vésperas da data. O que justificaria uma ação como esta?

– As pessoas responsáveis por isso não estão preocupadas com a cidadania, mas sim com o lucro. Não é só sobre negros a questão. Esta data trata da consciência da sociedade em relação ao afro-descendente. Trata-se de um resgate da cultura brasileira, de elementos sutis que deixaram marcas profundas, que se tornaram tragédias. Do século XIX, de Zumbi dos Palmares até hoje, o que mudou, como avançamos? Esta deveria ser a reflexão do 20 de novembro. O país precisa resgatar sua identidade. Neste fim de semana participarei de uma dessas várias iniciativas, que é o Fórum de Diálogos África-Diáspora. Lá buscamos alternativas para o reconhecimento de que há 8 milhões de negros no mundo. No Brasil, 51% da população são afro-descendentes. Vamos simplesmente ignorar isto? Já passou da hora de acabarmos com esta desigualdade.

Bruna Soares – A luta contra o preconceito terá fim? 

– Claro que terá! Estamos todos trabalhando muito para isso e temos que acreditar, as culturas têm que se integrar na presença da Justiça. Não são um ou dois grupos de pessoas que estão nesta luta, são milhões de pessoas e é por isso que sei que venceremos.

Bruna Soares – Qual é sua mensagem pelo mês da Consciência Negra?

– Novamente reforço a ideia de que não podemos relacionar este momento ao negro, mas sim à sociedade e ao seu nível de conscientização com relação ao afro-descendente. Homens e mulheres negros ainda são subjugados e isto não está certo. Na sessão do plenário do dia 20, foi maravilhoso ver as presenças de embaixadores da África, que estiveram presentes apoiando a causa. Não queremos ser subjugados. A luta avançou muito, mas ainda não há igualdade de direitos para mais de 50% da população brasileira. Uma maioria que é minoria na inclusão social. O Brasil não se libertou da escravidão, mas ainda acredito no que meu pai me dizia: “Quando um negro se liberta, liberta milhões!”.

Fonte: Brasilia em Dia

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