Cotas Raciais: O Acinte das Fraudes

Vivemos presentemente no país uma onda de indignação: de um lado há os que repudiam corruptos ativos e passivos de toda ordem. Nos valores superfaturados, nas comissões que simulam serviços feitos, na lavagem de dinheiro, na sonegação de impostos etc. Esta lista parece não ter fim. Por outro lado, há quem veja excesso da PF, do MP e da Justiça Federal no tratamento dado a determinadas personalidades (empresários e políticos em sua maioria). Todavia, os fatos têm evidenciado fraudes de todos os tipos – de tamanho e duração variados. O que fica escancarado para quem tinha dúvidas, é que determinados setores da sociedade brasileira atuam contra a maioria de forma acintosa; o que de resto os ativistas negros e negras sempre souberam. Vejo ainda, especialmente militantes negros, se debatendo com energia na defesa ou no ataque em relação a esses fatos. Sobressai-se, muitas vezes, as posições político-partidárias-ideológicas dos contendores; o que me parece bastante natural. Vê-se muita determinação nas pessoas, levando a crer que tal posicionamento conseguirá nos salvar dos males que o nosso País sempre sofreu: – a injustiça, que é a essência do DNA brasileiro.

Por Hélio Santos, do Brasil de Carne e Osso

Michel Filho/ Agência O Globo
Foto: Michel Filho/ Agência O Globo

Por conta disso, em meados dos anos 90 – precisamente em 1995 –, o Movimento Negro colocou na agenda do país a necessidade de políticas específicas para reduzir as perdas acumuladas ao longo de meio milênio de Brasil. Tais políticas foram apelidadas pela mídia de “cotas raciais”.

Ainda em 1996, na cidade de Vitória, capital do Espírito Santo, coordenei o primeiro encontro feito pelo estado brasileiro para debater aquele tema. Lá, além de alguns ativistas, como João Jorge Rodrigues, Antônio Carlos dos Santos Vovô, Zélia Amador de Deus, Carlos Medeiros, Abigail Páscoa, Ivair dos Santos, Vera Triumpho e outros, estavam diversos representantes do Itamaraty, dos ministérios da Educação, Saúde, Esportes e Justiça. Além de discutirmos na ocasião o conceito de Ação Afirmativa, debateu-se a possibilidade da existência de fraudes e dos riscos quando da implementação das tão reivindicadas políticas desde a Frente Negra Brasileira nos anos 1930. Entendia- se que por ser o Brasil um país tão retardatário nesse campo haveria estranhamento e falhas. Não devemos esquecer que durante muito tempo estivemos nessa batalha por nossa própria conta e risco. Não se admitiam políticas com foco na questão étnico-racial – nesse particular direita e esquerda se entendiam muito bem, por razões diferentes, é verdade. O Movimento Negro sofreu muita solidão política na luta pelas ações afirmativas.

FALSIDADE IDEOLÓGICA

Ainda nos anos 90, o grupo suprapartidário que eu coordenava no Governo Federal atuou de maneira muito aguerrida contra o racismo institucional ainda virgem no aparelho de estado brasileiro. Tínhamos como certo que se alguém não-negro ao se autodeclarar preto ou pardo, cometeria um crime: falsidade ideológica. Trata-se de um tipo de crime em que alguém adultera um fato para obter vantagem ou prejudicar a terceiros. No caso das cotas raciais ocorrem os dois atributos, pois além de obter um direito indevido o criminoso impede que o legítimo destinatário da política afirmativa se beneficie dela! O artigo 299 do Código Penal Brasileiro estabelece para esse delito a pena de reclusão de 1 a 5 anos, além de multa. Alguém conhece um desses fraudadores que foi preso? Banalizar os direitos dos negros é um tipo de racismo perverso e, sobretudo, desrespeitoso. Trata-se de perverter direitos retardados por séculos. A impunidade por infringir direitos do povo negro é o cacoete mais antigo do Brasil.

Reflexões, devem ser feitas em condições de estabilidade emocional. Mas devo confessar que tem sido para mim muito difícil deparar-me com fraudes acintosas de brancos que se passam por negros. Isso vem acontecendo nas universidades e agora também nos concursos públicos. Nas universidades os cursos mais disputados são os mais visados, assim como também nos concursos. Muita gente sonha em estudar medicina ou engenharia numa boa universidade de graça. Quem não gostaria de atuar numa carreira com salário inicial de 15 mil reais, como a de auditor ou procurador?

AFRODESCENDENTES; NÃO. AFROINDECENTES 

Pelo andar da carruagem, brancos travestidos de negros vão continuar a ocupar as vagas destes nas universidades e depois, sempre impunemente, vão surrupiar as vagas nas carreiras mais valorizadas do serviço público. Essa peça surreal é muito extravagante frente a história das lutas pelas cotas. Estou dizendo aqui para todas e todos que os negros estão sendo lesados gravemente. Agora mais do que antes. São surrupiados da cidadania conquistada por gerações. Tudo isso impunemente, sem ninguém pegar cadeia. Temos de ler mais os poetas negros. Eles e elas se mantém magnificamente irados. Eles estão tão adiante que não os alcançamos mais a olho nu.

Simone Harnik/UOL
Foto: Simone Harnik/UOL

De norte a sul há fraudes nas universidades. Neste ano, na UFRGS, os calouros questionaram um desses casos. Ver bem: os próprios alunos é que reclamaram e não a secretaria que aceitou a matrícula. O calouro do curso de direito denunciado pelos colegas, que o viram como uma pessoa branca, declarou ter “familiares de pele negra”. Disse ainda nunca ter sofrido preconceito. Mas a frase dita por ele que fiz questão de pinçar esclarece bem do que se trata afinal: “Este negócio de preconceito é relativo. Na minha opinião tu sofres preconceito se quiser”. Só uma pessoa muito alienada, negra ou branca, seria capaz de dizer algo tão estapafúrdio.

O Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) investigou 41 alunos que teriam fraudado a UERJ. Destes, 7 deletaram seus perfis do Facebook. Afinal, o que escondem? Se nota a intenção descarada de fraudar. Há alunos investigados em 14 cursos. Um deles de pele clara do curso de medicina foi enfático ao declarar “não ter interesse” em comentar o assunto. Por outro lado, uma aluna cotista negra assim se manifestou sobre uma colega investigada: “O sistema de cotas é confuso, subjetivo e que permite a autodeclaração. A partir do momento em que ela se considera negra é uma opinião dela, não tenho como ir contra”. Mais: “As pessoas só estão olhando o fenótipo”… “Só estão questionando a situação porque ela é loira de olhos azuis”. Inacreditável essa fala!! Dá para acreditar nisso? Pois está no g1.globo.com/rj. É necessário mudar radicalmente a ideia de que nada se pode fazer em relação à autodeclaração. Claro que pode se ela for falsa.

Não adianta conquistar direitos se não formos capazes de assegurá-los. SEPPIR, Ministério Público, Movimento Social, Conselhos, Coordenadorias e Secretariais Estaduais e Municipais da igualdade racial têm de estar juntos nessa empreitada. Há que se desenvolver um modelo com o MEC e o MP para fechar essa torrente de abusos contra as ações afirmativas. Os fraudadores devem ir para a cadeia. Sabe-se, portanto, no amplo repertório de maus feitos da sociedade, mais um particular e perverso tipo de crime: o assalto desavergonhado às oportunidades da juventude negra. Sem punições exemplares a impunidade fica estabelecida como direito de aviltar políticas duramente conquistadas. Temos, sobretudo, de possibilitar caminhos que levem os jovens negros egressos do ensino fundamental público para a universidade, pois tem havido sobras de vagas das cotas raciais que vêm sendo preenchidas por não-negros, como na Universidade Federal do Paraná. Refiro-me à necessidade da adoção de políticas afirmativas antes da chegada às universidades públicas.

Voltaremos de novo a esse assunto.

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