Cristina Bruschini, pilar dos estudos de gênero no Brasil, por Arlene Martinez Ricoldi

Tive o prazer e o privilégio de conviver estreitamente com Cristina Bruschini nos últimos oito anos. Formada na boa escola acadêmica anterior ao “produtivismo científico” vigente, ela jamais procurou privilegiar esse aspecto em seus trabalhos. Entendia que o fazer acadêmico tinha seu tempo, para que fosse bem feito e original.

Isso não significou, no entanto, produzir pouco. Publicou regularmente nos últimos anos, sem falar nas diversas atividades em que se envolveu. Antes de trabalhar com ela, eu já conhecia vários de seus trabalhos, que eram sempre muito bem recebidos pela comunidade acadêmica, em especial entre as/os estudiosas/os de gênero. Só nos últimos dez anos, organizou duas coletâneas (Gênero, Democracia e Sociedade Brasileira, 2001; Mercado de Trabalho e Gênero, 2008), elaborou vários artigos e capítulos de livro (ver bibliografia abaixo) e uma grande pesquisa sobre trabalho doméstico em famílias de baixa renda, realizada em duas etapas: Articulação Trabalho e Família, 2008, cuja primeira fase reuniu legislação nacional e internacional sobre a questão, além de investigar mulheres de baixa renda, e Revendo Estereótipos, 2010, sobre o trabalho doméstico masculino (Textos FCC 28/08 e 31/10).

Cristina sempre foi uma pesquisadora colaborativa. Trabalhava bem em equipe, ouvia todo o tipo de sugestão sem deixar de dar ao trabalho a sua orientação. Apesar de não lecionar, não se esquivava a formar as pesquisadoras mais jovens que com ela trabalharam, sempre incentivando o aperfeiçoamento intelectual, a ida a congressos e o trabalho acadêmico. Nos últimos vinte anos, pelo menos três pesquisadoras tiveram o privilégio de usufruir de sua experiência e generosidade trabalhando estreitamente com ela: Maria Rosa Lombardi, Sandra Unbehaum e eu. Cristiano Mercado foi outro colaborador próximo de Cristina, principalmente na lida com microdados de estatísticas nacionais. Isso sem falar no sem número de parcerias com outras pesquisadoras e estudiosas.

Foi feminista de primeira hora na segunda onda do feminismo brasileiro, investigando o trabalho das mulheres, constituindo o seleto grupo de acadêmicas feministas que começa a produzir regularmente trabalhos sobre a condição feminina. Colaborou com os movimentos feministas na década de 1980, em especial no processo de elaboração da Constituição de 1988. Desde então, nunca deixou de dialogar com esses movimentos, discutindo e fornecendo subsídios para a discussão de políticas públicas para as mulheres.

Durante a carreira, sua preocupação sempre foi com o trabalho produtivo das mulheres e o encargo do trabalho doméstico que quase sempre recaía sobre elas. Tendo assistido ao ingresso contínuo das mulheres no mercado de trabalho desde meados da década de 1970, até os altos índices atuais de participação das mulheres na População Economicamente Ativa (hoje mais de 50% das mulheres trabalham ou procuram emprego, isto é, são economicamente ativas, segundo estatísticas do IBGE/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), suas preocupações se voltaram, na última década, ao difícil malabarismo entre trabalho e família que a maioria das mulheres trabalhadoras tinha que enfrentar.

Ela mesma, como mãe amorosa e esposa dedicada, tinha que conciliar as atividades profissionais com a atenção à família. Para isso, sempre assinalava que podia contar com o cuidado e companheirismo do marido Sérgio, parceiro de tudo na sua vida. Também nessa última década, pode assistir ao casamento da filha Cristiana e ao nascimento de seus dois netos; torcia para o filho Fábio se “acertar” com a namorada, de quem gostava muito.

Nos últimos meses, em razão do seu tratamento, trabalhava em casa. Fui várias vezes até lá para os últimos retoques em um artigo que havia sido aprovado para publicação (mas ainda não publicado) na Revista Estudos Feministas. Sentia prazer em trabalhar e esquecia os problemas de saúde. O trabalho sempre foi sua maior terapia Trabalhou até quando pode.

Não seria possível traduzir neste texto a energia e a determinação de Cristina. Um pilar dos estudos de gênero no Brasil, um exemplo para mim e para todos os que conviveram com ela.

Bibliografia

O primeiro grande trabalho de Cristina Bruschini foi o seu doutorado, publicado em livro: Mulher, Casa e Família: Cotidiano nas Camadas Populares, editora Vértice, 1990. Um dos seus trabalhos preferidos (considerado por ela seu melhor artigo) foi “Fazendo as Perguntas Certas: como tornar visível a contribuição econômica das mulheres para a sociedade”, in Gênero e Trabalho na Sociologia Latino-Americana, Alast, 1998. Entre as numerosas coletâneas que organizou, Uma questão de gênero (em conjunto com Albertina Costa), ed. Rosa dos Tempos, 1992, é até hoje considerado um clássico. Outra coletânea, Gênero, Democracia e Sociedade Brasileira (em conjunto com Sandra Unbehaum), fechou o ciclo dos concursos de dotação em pesquisas sobre mulheres e gênero, que ela coordenou por muitos anos.

Alguns trabalhos recentes

“Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não-remunerado?” Capítulo de livro em Novas conciliações e antigas tensões? Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

Organização do livro Mercado de Trabalho e Gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: FGV, 2008 (com Albertina Costa, Bila Sorj e Helena Hirata). Nesse livro está seu artigo “Trabalho e gênero no Brasil até 2005: uma comparação regional” (com Arlene Ricoldi e Cristiano Mercado).

O artigo “Família e Trabalho: difícil conciliação para mães trabalhadoras de baixa renda” (em conjunto com Arlene Ricoldi) foi publicado no Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, nº 136, 2009.

Seu último trabalho publicado foi “Trabalho, Renda e Políticas Sociais: avanços e desafios” (com Arlene Ricoldi, Cristiano Mercado e Maria Rosa Lombardi), no livro O Progresso das Mulheres no Brasil, Cepia-ONU Mulheres, 2011.

Arlene Martinez Ricoldi é pesquisadora da Fundação Carlos Chagas.

 

 

 

 

Fonte: Agência Patricia Galvão

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