Crônica de uma tragédia em 17 Atos, até agora

1º Ato – Desci do ônibus na Praça Rui Barbosa, no centro de Porto Alegre, por volta das 18h30. Parecia domingo. Poucas pessoas se apressavam para chegar em casa. Comércio todo fechado. Já tinha soado o toque de recolher.

2º Ato – Ando devagar. Observo as expressões. O medo é evidente. Passei na frente da Prefeitura. Não tinha ninguém. Na Esquina democrática, só a Polícia. Rumei pra Praça da Matriz, centro dos poderes do estado.

3º Ato – Cheguei pela rua da Ladeira. A entrada pela rua ao lado do Teatro São Pedro estava fechada pela polícia. Contornei o Palácio da Justiça e entrei na praça, espaço de tantas manifestações, pequenas e grandes, com confronto e sem.

4º Ato – O clima era outro. Não havia a tensão do último ato, na segunda-feira. Gente de todas as idades. No carro de som, em frente ao Palácio Piratini, a banda tocava. O ato-cultural convocado pelo Bloco de Lutas parecia funcionar.

5º Ato – Segui caminhando por entre a multidão. Cinco mil pessoas estavam ali. Encontrei amigos pelo caminho. Reconheci rostos, companheiros nestes 20 anos de militância por um outro mundo. Pessoas que nunca desistiram da luta. Alguns mais jovens, mas não menos parceiros. Vários coletivos buscando se organizar e caminhar juntos.

6º Ato – Entre uma música e outra, o microfone era utilizado. Várias opiniões. Críticas aos governos Tarso e Dilma, à truculência e militarização da polícia, aos gastos com a Copa, ao poder econômico que mantêm o estado das coisas, à manipulação da imprensa, à criminalização dos movimentos sociais, à infiltração de grupos nazi-fascitas. Solidariedade à favela da Maré, no Rio, onde as balas não são de borracha.

7º Ato – Eduardo Solari sobe ao caminhão de som e com sua voz poderosa nos lembra que somos latino-americanos e temos história. “Todas las Voces”, da nossa saudosa La Negra, tocou fundo. Um nó apertou a garganta. “Todas as vozes, todas, todas as mãos, sangue pode ser canção no vento cantar comigo, cante irmão americano liberta a sua esperança com um grito na voz”. Não começamos hoje e não vamos parar amanhã. Seguimos caminhando.

8º Ato – Um representante do Bloco de lutas lê em bom tom o manifesto e a pauta de reivindicações construída em assembleia pelos coletivos que participam da luta contra o aumento das passagens desde janeiro. Uma pauta ampla. Me senti contemplada e feliz com o amadurecimento político. Uma comissão é recebida pelo governador Tarso e entrega a pauta.

9º Ato – Neste momento, no céu aparece um enorme Zeppelin ou sei lá como se chama aquilo. Com letreiros luminosos, sem assinatura, dizia que o vandalismo não o representava. O gigante acordou. Vem pra Rua. Blá, blá, blá. Muito estranho. Quem tem dinheiro para pagar por isso?

10º Ato – Sinto algo no ar. Caminho entre as pessoas. Quero ver as bandeiras, quem as tremulam. Encontrei um grupo de adolescentes e um menino com não mais do que 12 anos. Estão se divertindo. Pergunto de onde são. “Somos do Partenon. E aí, tia, não vai ter passeata hoje?”. Respondo que não, que era um ato-cultural e ficaria ali na praça. Conversamos e rimos, quando chega uma menina com não mais do que 20 anos. Filha de classe média, cabelos bem cuidados e cheia da razão. Pergunta pra gurizada o que tava achando daquele ato. Se se sentiam representados. Um ato sem cartazes, o que não era verdade. Ou seja, colocando pilha pra meninada ir contra o ato organizado. Me intrometi, disse que achava ruim o que ela estava fazendo e que sim, aquele ato me representava. Ela saiu furiosa, me chamando de alienada. Mas os meninos ficaram.

11º Ato – Meu faro de anos cobrindo os movimentos, me leva até o centro da praça. Lá chegava um grupo bem grande, talvez umas mil pessoas, gritando que protesto não é festa. Observo quem são. Na minha avaliação, tinham dois grupos. Uma meninada branca, classe média, alguns que me pareceram mais exaltados, enrolados na bandeira do Brasil. De outra parte, uma garotada das vilas. Meninos negros, com o rosto coberto ou não. Pergunto a um destes com a bandeira, quem era, de onde vinham. Não quer saber muito de papo. Diz que são brasileiros, que vêm de várias partes e que ele era piloto.

12º Ato – Ficam pouco tempo ali e alguém grita pra seguirem para a prefeitura. Daí por diante tudo muda. A tensão ta instalada. A repressão policial parece inevitável. Começam a estourar bombas. Novas armas não-letais são testadas. O grupo segue pelo Centro, Cidade Baixa e a guerra campal tem início.

13º Ato – Volto pro caminhão de som. As pessoas da organização do ato discutem como proceder. A decisão é seguir todos juntos em caminhada pelas ruas Duque de Caxias e Independência, com calma. A cavalaria está na frente da catedral, onde uma faixa diz “Milagres também acontecem nas ruas”. Alguns mais exaltados jogam pedras. Cinegrafistas e fotógrafos estão entre a cavalaria e a marcha do Bloco de Lutas. Seguimos, mas a tensão é grande.

14º Ato – Chego à casa de um amigo no centro e fico por ali. Acompanho as transmissões ao vivo da TV Com, os jornais da noite. Por fim, a mensagem do ministro da Fazenda: “A inflação e o desemprego vão crescer”.

15º Ato – Sexta-feira pela manhã, sigo pelo centro para pegar o ônibus. Paro em um dos bares da Praça Rui Barbosa pra tomar um café. Quero ouvir o que o povo pensa. O dono do estabelecimento reclama, diz que a coisa tá feia. O senhor do jogo do bicho, assimilou o discurso do ministro. “Não vai dá boa coisa, o desemprego vai aumentar”. Segundo ele, a polícia revistou geral quem descia dos ônibus que chegavam da periferia ali no terminal. “Nas primeiras manifestações, eles deixaram passar todo mundo pra ver quem eram”, afirmou.

16º Ato – Na internet, fervilham opiniões. Os bodes estão por todos os lados. A orquestra está tocando, mas não sabemos quem são os maestros. Uma raiva contida está sendo liberada. Parece uma grande catarse. Alguns falam em luta de classes. Mas luta de classes, sem consciência, levará aonde? Pra quem tá nas vilas/favelas, convivendo com a miséria, a violência, o descaso, a real necessidade das políticas públicas, que não atendem, a realidade é dura todos os dias. E as balas não são de borracha.

17º – “A gestação de uma nova moral deve ser, necessariamente, um componente do processo de luta”, defendia Alexandra Kolantai, uma revolucionária russa. O momento é crítico e não serve a generalizações. Tudo o que escrevi foram impressões. Outras pessoas podem ter outras visões. Neste momento, não proclamo nenhuma verdade. Mas acredito que transformações se darão. Os rumos estão em disputa.
Katia Marko é jornalista e militante

 

 

Fonte: Nucleo Piratininga

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