De Cazemiro@edu para Demóstenes.Torres@gov

Desde o século 19, o negro livre é uma encrenca para as nossas leis, eu que o diga

por: Elio Gaspari

ILUSTRE SENADOR Demóstenes Torres,
Quem lhe escreve é Cazemiro, um Nagô atrevido. Faço-o porque li que o senhor, um senador, doutor em leis, sustenta que a escravidão brasileira foi uma instituição africana. Referindo-se aos 4 milhões de negros trazidos para o Brasil, vosmicê disse o seguinte: “Lamentavelmente, não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram…”


Vou lhe contar o meu caso. Eu cheguei ao Rio de Janeiro em julho de 1821 a bordo da escuna Emília, junto com outros 354 africanos. O barco era português e o capitão, também. Fingia levar fumo para o Congo, mas foi buscar negros na Nigéria e, na volta, acabou capturado pela Marinha inglesa. Desde 1815, um tratado assinado por Portugal e Grã Bretanha proibia o tráfico de escravos pela linha do Equador.


Quando a Emília atracou no Rio, fomos identificados pelas marcas dos ferros. A minha, no peito, parecia um arabesco. Viramos “africanos livres”. Livres? Não, o negro confiscado a um traficante era privatizado e concedido a um senhor, a quem deveria servir por 14 anos. O Félix Africano, resgatado em 1835, penou 27 anos. Doutor Demóstenes, essa lei era brasileira.


A turma da Emília trabalhou na iluminação das ruas e no Passeio Público. Algumas mulheres tornaram-se criadas. A gente se virou, senador. Havia senhores que compravam negros mortos, trocavam nossas identidades e não nos liberavam. As marcas a ferro nos ajudaram.
Alguns de nós conseguiram juntar dinheiro. Como estávamos sob a supervisão dos juízes ingleses, em 1836 compramos lugar num barco. Dos 354 que chegaram, talvez 60 retornaram à África.


Como doutor em leis, vosmicê sabe que o Brasil se comprometeu a acabar com todo o tráfico em 1830. Entre 1831 e 1856 chegaram 760 mil negros, os confiscados devem ter sido 11 mil, ou 1,5%. Aquela propriedade da Marinha, na Marambaia, onde às vezes o presidente brasileiro descansa, era um viveiro de escravos contrabandeados. Não apenas a escravidão do Império era uma instituição brasileira, como assentava-se no ilícito, no contrabando.


Outro dia eu encontrei o Mahommah Baquaqua, mais conhecido nos Estados Unidos do que no Brasil. Ele foi capturado no Benin, lá por 1840, vendido a um padeiro em Pernambuco e revendido no Rio ao capitão do navio “Lembrança”.


Em 1847, o barco fez uma viagem ao porto de Nova York e lá o Baquaqua fugiu. Teve a proteção dos abolicionistas, razoável cobertura jornalística, estudou e escreveu um livro contando sua história (inédito em português, imagine). Fazia tempo que eu queria perguntar ao Baquaqua por que, em suas memórias, não contou que, de acordo com as leis brasileiras, o seu cativeiro era ilegal. Ele diz que esqueceu, mas que, se tivesse lembrado, não faria a menor diferença.


Senador Demóstenes, a escravidão foi brasileira, assim como é brasileira uma certa dificuldade para lidar com os negros livres. Eu que o diga.


elio_gaspariAxé,
Cazemiro


P.S.: Há uma referência ao caso da Emília no artigo “A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão”, da professora Beatriz Gallotti Mamigonian, publicado recentemente na coletânea de ensaios “O Brasil Imperial”. Que Xangô apresse a publicação de seu livro sobre os “africanos livres” no Brasil.

Fonte: Folha de São Paulo

 

 

 

 

Errata

 

Estava errada a informação aqui publicada há uma semana, segundo a qual as memórias do escravo Mahommah Baquaqua, que em 1847 fugiu de um navio brasileiro no porto de Nova York, nunca foram editadas no Brasil. Eduardo Coelho, do Arquivo-Museu da Literatura Brasileira da Casa de Rui Barbosa, corrige: elas já foram editadas na Revista Brasileira de História, com apresentação da professora Silvia Hunold Lara e tradução de Sonia Nussenzweig. O texto está disponível, como apêndice, no livro “Questão de Pele”, de 2009.

 

 

Fonte: Folha de S.Paulo

 

+ sobre o tema

Detenção de Mano Brown exemplifica a mensagem de Cores e Valores

Pedro Paulo Soares Pereira, 44 anos, também conhecido como...

Um quinto dos americanos acha que Obama é muçulmano, diz pesquisa

Obama frequenta a igreja e já reiterou publicamente sua...

Olimpíada é aprofundamento do modelo militarizado de segurança

Para diretor da Anistia Internacional, aumento da violência do...

Em prol das crianças e jovens

Menino, negro, 13 anos, vivendo na zona rural do...

para lembrar

Justiça cassa 13 vereadores em São Paulo; advogado diz que lei não proíbe doações

Fonte:UOL - A Justiça Eleitoral de São Paulo cassou...

Machismo e racismo dentro e fora do BBB

por Karen Polaz de Blogueiras Feministas Não sou fã...

Entrevista – Fábio Mesquita: “Talvez a solidariedade nos leve a viver em um mundo melhor”

“Este ciclo vai passar… e talvez esse momento tão...

Maioria acha que Obama não mereceu Nobel

Fonte: Blog Sérgio Dávila - Pesquisa Gallup divulgada hoje confirma...

Fim da saída temporária apenas favorece facções

Relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Senado Federal aprovou projeto de lei que põe fim à saída temporária de presos em datas comemorativas. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA),...

Morre o político Luiz Alberto, sem ver o PT priorizar o combate ao racismo

Morreu na manhã desta quarta (13) o ex-deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), 70. Ele teve um infarto. Passou mal na madrugada e chegou a ser...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
-+=