Desastre-crime da Samarco: juiz reconhece violação contra mulheres no processo de reparação

Artigo produzido por Redação de Geledés

No dia 14 de agosto, a Justiça Federal admitiu a ocorrência de “violações concretas contra os direitos das mulheres” no processo de reparação de danos do desastre-crime da Samarco, Vale e BHP Billiton. Poucos dias depois de reconhecer a criação de uma narrativa fantasiosa sobre a reparação, o juiz chama atenção para violências praticadas pela Fundação Renova ao adotar “um modelo patriarcal de unidade familiar” no cadastramento das pessoas atingidas.

O juiz afirma que “o modelo de cadastro adotado pela Fundação Renova é inconstitucional”, e difere de experiências nacionais de cadastro que conferem certa autonomia aos membros de uma mesma família e se ocupam protetivamente da situação das mulheres em razão de sua maior vulnerabilização em uma sociedade patriarcal e machista, como faz o CadÚnico. O Poder Judiciário também reconhece a “ausência do direito à revisão e atualização do cadastro”, a “consagração de uma pessoa física, em sua grande maioria, do sexo masculino, como chefe de família” e a “ausência de equiparação do trabalho feminino ao masculino”. Em complemento, a violação da dignidade da pessoa humana pela Fundação Renova inclui o não reconhecimento das mulheres como pescadoras e agricultoras profissionais, pois o desempenho dessas práticas no cadastro oficial da reparação só pode ser atribuído ao cônjuge do sexo masculino.

As violações são graves e atravessam a experiência de reparação das mulheres atingidas desde o rompimento da barragem, em novembro de 2015, até os dias de hoje. Elas foram denunciadas muitas vezes por Comissões de Atingidos, por Assessorias Técnicas Independentes, por pesquisas individuais e coletivas que se debruçaram sobre a temática e, inclusive, pelo Ministério Público e Defensoria. Além disso, ao não reconhecimento da atividade profissional e à supressão de sua autonomia no cadastro pela condição de tutelada, somam-se outros danos não reconhecidos, como o aumento da sobrecarga doméstica, a perda da rede de apoio, o aumento da violência e outras perdas que transformaram substancialmente a vida de mulheres atingidas e seguem sem reparação. 

A decisão não contempla as implicações do racismo na reparação. Todavia, é importante considerar que os 45 municípios atingidos pelo rompimento da barragem são majoritariamente habitados por pessoas negras, exceto Itueta, em Minas Gerais, e Baixo Guandu, Colatina e Marilândia, no Espírito Santo. Maioria entre as pescadoras, agricultoras, marisqueiras e em outras ocupações profissionais desempenhadas por mulheres e invisibilizadas no cadastro, as mulheres negras geralmente ocupam as piores tarefas de reconstrução em situações pós-desastre. Nesse contexto, o reconhecimento de violações contra mulheres atingidas exige o enfrentamento conjunto das discriminações de gênero e raça que atravessam a sociedade brasileira e influenciam processos de reparação como o rompimento da barragem das mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton.


Fernanda Pinheiro da Silva – Geógrafa e doutoranda em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC

+ sobre o tema

A escola brasileira como projeto de país

Pelos 8,5 milhões de quilômetros quadrados do Brasil cabem...

Casa de acolhimento tenta sobreviver na pandemia

Em 38 anos, mais de 100 pessoas, entre elas...

para lembrar

Lei de cotas e seus avanços

Ao longo dos anos a necessidade de se pensar...

A comissão em prol da vida

Ex-ministros de vários governos e ativistas de direitos humanos...

“Não sofro com a discriminação racial, mas aproveito o espaço da mídia para denunciar, combater. E vejo isso como uma missão”, afirma a atriz...

Aos 74 anos, a atriz e cantora Maria José Motta de Oliveira, mais conhecida como Zezé Motta, está a todo vapor, em plena gravação...

“Falar de intolerância é fundamental, pois ela é o maior mal dos novos tempos”, diz Susanna Lira, cineasta

Em tempos de ascensão da intolerância no Brasil, os filmes e séries da cineasta Susanna Lira se tornaram mais do que relevantes. São hoje...

Pacto Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial

No último dia 25 de novembro, Geledés-Instituto da Mulher Negra, representado por sua diretora Maria Sylvia de Oliveira, participou da primeira reunião do Observatório...
-+=