Desde 1968, ela dá aulas antirracismo. Está cansada de repetir a mesma coisa. E de ser ameaçada de morte

Conforme os protestos antirracistas cresciam nos Estados Unidos e em outros países, imagens de Jane Elliott, uma professora e educadora antirracista, começaram a circular na mídia americana.

Em um clipe de 2011, Elliott, com seus óculos redondos e cabelos brancos, entra em uma discussão calorosa com uma estudante universitária branca durante um exercício educativo sobre racismo. A moça, desconfortável e pertubada pela experiência, começou a chorar e deixou a sala.

“Você acabou de exercer uma liberdade que nenhuma dessas pessoas negras tem”, diz Elliott à estudante, severamente. “Quando as pessoas negras se sentem cansadas do racismo, elas não podem se retirar da sala.”

Talvez você tenha visto um vídeo de 2018 em que Elliott está em uma mesa-redonda com a atriz e produtora Jada Pinkett Smith; a filha, Willow, e a mãe de Jada, Adrienne Banfield-Norris.

“Eu não sou uma mulher branca. Sou uma pessoa negra desbotada”, diz Elliott, atordoando as anfitriãs. “O meu povo se mudou para longe do Equador, e essa é a única razão pela qual a minha pela é mais clara”.

“Uau”. Estou com você”, responde Jada Pinkett Smith.

Elliott, agora com 87 anos, começou a ensinar sobre racismo no dia 5 de abril de 1968 — o dia seguinte ao assassinato do reverendo Martin Luther King Jr.

Naquele tempo, ela ensinava em uma escola só para brancos na cidade de Riceville, no estado americano de Iowa, e a notícia da morte de Luther King a chocou. Ellioot, então, abandou o plano de aulas para o dia seguinte e voltou com um novo, que forçaria as crianças a experimentar o preconceito e a discriminação.

Em um exercício que também é chamado de “Olhos Azuis, Olhos Castanhos”, ela dividiu a turma em dois grupos baseados na cor dos olhos. Aqueles com olhos azuis eram melhores, mais espertos e superiores aos com olhos castanhos. Assim, eles tinham direito a algumas regalias como mais tempo de recreio e acesso à fonte de água.

Rapidamente, a dinâmica na turma mudou. “Eu vi crianças maravilhosas se tornarem pequenos preconceituosos”, ela explicou em um documentário da rede americana PBS sobre o seu trabalho.

No dia seguinte, ela inverteu os papéis. Os alunos com olhos castanhos passaram a ser superiores, com direito a regalias, e os com olhos azuis se tornaram os inferiores.

Durante décadas, Elliott repetiu o exercício pelo país, incluindo em 1992 no programa de Oprah Winfrey, e ela sempre testemunhou mais ou menos a mesma cena: pessoas se jogando contra as outras com base na cor dos olhos.

Agora, com a onda de manifestações contra o racismo levando mais pessoas brancas do que nunca às ruas das cidades americanas, o trabalho de Elliott é impulsionado de volta ao olhar público.

Mas ela está cansada dele.

– Eu continuo tentando dizer as pessoas por que o racismo tem que acabar, e elas continuam me fazendo as mesmas perguntas, tipo “Como fazemos isso?”, mas elas continuam ignorando as respostas – diz Elliott em uma entrevista por telefoneao jornal “The New York Times”. – Isso me deixa irritada porque tenho falado sobre isso há 52 anos!

Nessa entrevista, Elliott fala sobre a persistência do racismo e como as coisas evoluíram desde 1968.

O que você acha do que acontece hoje nos Estados Unidos?
O que eu quero saber é por que as redes de TV continuam exibindo o vídeo da morte de George Floyd repetidamente. Como se atrevem? Deveria haver multas para quem faz isso. Ela fazem isso para que as pessoas brancas vejam como é horrível? Ou para que jovens negros e suas mães entendam o que pode acontecer com eles? É uma questão sensível ao ponto em que as redes de TV não percebem a mensagem que estão enviando a mulheres negras e seus filhos.

Nas últimas décadas, você tem dado aulas e workshops antirracistas por todo o país. Notou alguma mudança na maneira como seu trabalho é recebido?
Tenho feito o exercício para adultos por cerca de 35 anos. Mas, nos últimos anos, tenho apenas discursado sobre o tema porque agora vivemos uma situação em que as pessoas desligam imediatamente se acham que vão aprender algo contrário às suas crenças, e eu não quero mais ser ameaçada de morte. Estou cansada de receber ameaças de morte.

Tem sido ameaçada?
Sim. Há mais ou menos um ano, eu estava discursando em uma faculdade no sul da Califórnia e a minha filha estava lá. Então esses três garotos — todos brancos — conversavam e um deles disse: “você não gostaria de ir lá em cima e simplesmente atirar nela?”. Um outro respondeu: “Eu gostaria de subir, bater nela e depois estuprá-la.” Quando minha filha chamou o segurança, esses trê sgarotos fugiram.

Em uma entrevista recente, você disse que se sente frustrada toda vez que uma pessoa diz “Eu não vejo preto ou pardo”. Pode elaborar sobre isso?
Professores podem ficar em frente a uma turma e dizer “Eu não vejo pessoas como negras ou pardas, eu apenas vejo pessoas”. O que esses professores estão dizendo, na realidade, é que eles têm a liberdade de ignorar o maior órgão do seu corpo. Há apenas uma raça — a raça humana. É tempo de abandonar a ideia de um número de raças. Somos todos da mesma espécie, apenas de cores diferentes, tamanhos diferentes, gêneros diferentes.

Quando alguém me diz “Eu sou birracial”, eu pergunto: “Qual dos seus pais veio do espaço? Você tem um pai ou mãe que não é humano?Você está tentando me dizer que seu pai ou sua mãe é de uma cor diferente, mas isso não quer dizer que existam duas raças diferentes.

Então não devemos ver a cor da pele?
Veja a cor da pele, mas não como uma coisa positiva ou negativa — ela é apenas a reação do seu corpo ao ambiente!

Onde você cresceu e quando começou a entender o problema do racismo nos EUA?
Eu fui criada em uma fazenda no nordeste de Iowa.Quando fui à escola, aprendi o currículo padrão, segundo o qual os homens brancos fizeram todas as invenções e descobertas da humanidade porque elas são, oh!, tão superiores. Simplesmente não falávamos sobre raça, mas sabíamos que estávamos OK porque não importava o quão pobres nós éramos — e éramos realmente pobres — ao menos nós éramos brancos.

Depois eu fui para a universidade, e na minha primeira aula de Estudos Sociais, o professor branco ficou de pé diante de nós e disse: “Quando você entra na sala, não deve ensinar em oposição aos costumes locais.” Eu pensei, bem, isso está errado. Mas não me levantei ou falei isso. Eu fiz o que pessoas brancas fazem o dia todo, todo dia: segui adiante.

E quando começou a ir no sentido contrário?
Nos anos 1950, eu e meu marido morávamos em Waterloo, no Iowa, e ele foi transferido para outra cidade. Tivemos que alugar a nossa casa, então coloquei um anúncio em um papel, e alguém ligou para perguntar se alugávamos para pessoas negras. Eu ainda lembro do que fiz: eu pensei que se alugássemos para pessoas negras, quando retornássemos, os nossos vizinhos brancos não falariam conosco. Então eu disse: “Esse é um bairro branco”. E a pessoa agradeceu e desligou. Mas eu imediatamente entendi o que tinha feito: deixei o dinheiro comprar a minha ética naquele momento. E decidi que isso não aconteceria de novo. Nunca colocarei o dinheiro acima dos meus princípios. E não coloquei, não colocarei.

Muitas pessoas brancas estão tentando lidar com seus preconceitos. Baseada em seu trabalho, o que elas podem realmente fazer nesse momento para ajudar?
Primeiro, você tem que entender que o que eu faço não é um trabalho duro. O que as pessoas negras fazem é. Elas não são pagas para aceitar essa droga todos os dias — elas têm que aceitar. Elas não são voluntárias. Elas são forçadas. Segundo, as pessoas brancas precisam parar de se referir a si mesmas como “aliadas” — como se isso deixasse tudo bem. Elas precisam se educar contra a ignorância que foi derramada sobre elas quando estavam na escola. E precisam entender que elas são a razão pela qual tanta gente está brava.

Leia também:

Olhos Azuis por Jane Elliott

Porque queremos olhos azuis? por Lia Vainer Schucman TEDx SaoPaulo Salon

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