O ano começou com a chacina do Cabula, em Salvador. Os tiros letais foram imortalizados pelo governador como gols da Polícia. Finalizamos novembro com a chacina do Morro da Lagartixa, Costa Barros, no Rio de Janeiro. O secretário de segurança pública atribui o fuzilamento dos cinco jovens negros à “falta de caráter dos policiais”. O governador, por sua vez, rechaça o fundamento racista da execução. Estamos, como sempre estivemos, por nossa própria conta
Por Cidinha da Silva Do Portal Fórum
O ano começou com a chacina do Cabula, em Salvador. Os tiros letais foram imortalizados pelo governador como gols da Polícia. Finalizamos novembro com a chacina do Morro da Lagartixa, Costa Barros, Zona Norte do Rio de Janeiro. O secretário de segurança pública atribui o fuzilamento dos cinco jovens negros à “falta de caráter dos policiais”. O governador, por sua vez, rechaça o fundamento racista da execução. Estamos como sempre estivemos por nossa própria conta.
Entre Rio e Salvador, nas chacinas de São Paulo, o governador que bate em crianças e adolescentes, ocupantes de escolas para reivindicar aulas e política educacional, cultiva o morticínio e justifica: “Quem não reagiu está vivo”. A pior notícia para os alvos da política de extermínio é que o ano ainda está longe de acabar.
No Morro da Lagartixa, à primeira vista foram 50 tiros no fuzilamento dos jovens negros que a imprensa insiste em chamar de jovens. Dizem que é exagero nosso, porque se fossem jovens brancos ninguém lhes destacaria o pertencimento racial. O caso é que se fossem cinco rapazes brancos da Zona Sul do Rio, isso não aconteceria porque os moradores de lá, caso não sejam de alguma favela encrustada na área, não são mortos como ratos.
Mas, se por acaso raríssimo acontecesse, cairia o secretário de segurança, em resposta. O governador do estado também nunca mais se elegeria, tampouco conseguiria emplacar seus descendentes na Câmara Municipal e Assembleia Legislativa. Os policiais receberiam pena máxima. A mídia daria extenso tratamento digno e humanizado ao caso. Haveria, por fim, comoção nacional e não apenas comentários anestesiados durante o café ou o almoço: “Você viu? Mataram mais cinco pretos no Rio. Onde? Sei lá, num daqueles morros.”
Posteriormente o exame de balística informa que foram 111 tiros disparados contra cinco jovens negros desarmados dentro de um carro. 22 balas para cada um. Uma bala para cada ano de vida dos rapazes mortos entre 16 e 25 anos. Os especialistas dizem que até para uma troca de tiros entre polícia e criminosos, tantos disparos seriam injustificáveis. É a geração Robocop e Rambobrincando de acertar alvos móveis.
111 disparos que trazem a lembrança macabra dos 111 homens assassinados pela polícia paulista dentro do presídio do Carandiru. Parece ser um número cabalístico na roleta da morte.
A fotografia de Seu Jorge Penha, pai de Roberto Penha, o menino cujo primeiro salário era comemorado, quando ele e os amigos foram assassinados, torna viral uma lágrima seca. Eu cá tenho dúvidas se o grosso da foto vulgarizada foi em solidariedade ao pai, órfão do filho, ou mera onda de rede social a propagar uma imagem de sofrimento plasticamente bonita. Fico inquieta porque a morte de negros pelo arbítrio policial não tem sido considerada assassinato.
Analistas, desde fora, questionam por que as famílias justificam que seus filhos assassinados não eram criminosos. Lembram a elas: “Mesmo que o fossem, não poderiam ser mortos, pois não existe pena de morte legalizada no país”.
Mas é pouco. É preciso ir mais fundo. É preciso ouvir a estas e a milhões de famílias negras desde dentro, desde antes das tragédias anunciadas. Desde o tempo de centenas de anos atrás quando o escravismo impedia a formação e manutenção das famílias negras. Desde o tempo que as destruiu pela aplicação das chamadas leis de vadiagem. Desde o tempo em que o racismo científico mediu seus cérebros e atribuiu-lhes o peso da criminalidade. Desde o tempo em que seus templos foram invadidos pela polícia e ainda hoje o são, queimados por fanáticos inimputáveis que enforcam sacerdotes com a bandeira de Tempo e os empalam.
É preciso olhar com olhos de ver e ouvir com ouvidos de escuta. Desde dentro.
(*) Cidinha da Silva é escritora. Publicou, entre outros, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê, 2013) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). Despacha diariamente em sua fanpage