Desigualdade racial na educação brasileira: um Guia completo para entender e combater essa realidade

FONTEObservatório de Educação
(Getty Images/Reprodução)

Introdução
De caráter estrutural e sistêmico, a desigualdade entre brancos e negros na sociedade brasileira é inquestionável e persiste com a fragilidade de políticas públicas para o seu enfrentamento. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, os negros representam 75,2% do grupo formado pelos 10% mais pobres do país.

Se realmente queremos construir uma sociedade igualitária, é necessário compreender qual o papel que cada estrutura socioeconômica desempenha na reprodução do racismo, a fim de desenhar estratégias eficazes para o seu enfrentamento. Nesse cenário, o combate à desigualdade racial na educação é essencial, enquanto elemento indispensável para qualquer mudança, de modo que sem uma educação efetivamente antirracista não é possível pensar em uma sociedade igualitária.

Ao longo deste especial, compilamos uma série de informações, dados e análises aqui do Observatório de Educação – Ensino Médio e Gestão para você compreender um pouco mais sobre a desigualdade racial na educação brasileira e porque ela existe e permanece. Além disso, também abordamos políticas públicas e iniciativas diversas de gestores de escolas adotadas para enfrentar o problema , de modo a ilustrar como possível trabalhar para reduzi-la.

Para ter acesso a mais conteúdos sobre o tema, distribuímos vários links ao longo do texto, direcionando para diversos materiais selecionados, disponibilizados e organizados aqui no Observatório de Educação. Utilize-os para explorar conteúdos mais aprofundados disponíveis na nossa plataforma sobre questões específicas relacionadas à desigualdade racial na educação.

O que é a desigualdade racial na educação brasileira?

Na sociedade brasileira as diferenças sociais entre brancos e negros são nítidas no cotidiano. Além do aspecto econômico, no qual pessoas pretas e pardas (a combinação desses grupos forma a classificação negra, segundo o IBGE) são maioria entre as que possuem rendimentos mais baixos, a persistência de situações de maior vulnerabilidade, indicada por evidências nos campos da educação, saúde, moradia, entre outros, mostram evidente desequilíbrio na garantia de direitos em prejuízo para a população negra. É possível também observar a sub-representação entre líderes de equipes nas empresas, juízes e políticos.

Nessa perspectiva, o professor da University of Texas, Marcelo Paixão, esclarece como podemos definir a desigualdade racial e qual o papel dos dados para que os gestores possam elaborar políticas e práticas de combate às desigualdades raciais expressas também no espaço escolar ou na educação brasileira.

O que dizem os dados

De acordo com o estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE, em 2018, a taxa de analfabetismo entre a população negra era de 9,1%, cerca de cinco pontos percentuais superior à da população branca, de 3,9%. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), também do IBGE, o percentual de jovens negros fora da escola chega a 19%, enquanto a de jovens brancos é de 12,5%.

Gráfico representando os jovens fora da escola. Fonte: IBGE

Nos últimos anos foi, observada queda do abandono no Ensino Médio tanto entre estudantes brancos quanto negros. Apesar de positiva, a informação precisa ser complementada com a observação de que a distância nos últimos anos pouco se alterou (permanece estável entre 2,5 e 3 pontos percentuais), mantendo a desigualdade. Além disso, o último dado, de 2018, mostra que a queda segue entre os estudantes brancos, ao contrário do índice entre os alunos negros (subiu de 7,7% em 2017 para 7,8% em 2018), com possibilidade de agravamento diante da pandemia do Coronavírus, conforme conteúdo da seção Em Debate que abordou o assunto.

Gráfico representando a trajetória histórica do abandono. Fontes: Censo Escolar – Microdados da situação de final de ano letivo, (INEP)

Outros dados sobre a desigualdade racial na Educação e também o depoimento do professor Marcelo Paixão estão disponíveis na seção Educação em Números, do Observatório da Educação, que você pode acessar por meio deste link . O roteiro disponível, com perguntas orientadoras, auxilia a análise, que pode explorar recortes como idade, faixa de renda, ano, entre outros.

Além de uma análise profunda dos dados atuais, conhecer os aspectos históricos do Brasil é fundamental para compreender a origem e os motivos da perpetuação da desigualdade racial na educação do nosso país.

Aspectos históricos do racismo no Brasil

Última nação do ocidente a abolir a escravatura, o Brasil, entre o fim do século XIX e início do XX, não criou nenhuma condição para a inserção digna da população negra na sociedade. Ao contrário, diversas obras, políticas e instituições disseminaram a ideia de um país mestiço, no qual o convívio é harmonioso entre as diferentes raças.

Dessa maneira, o racismo estrutural foi sendo construído como processo histórico, que, segundo Pires e Silva, hoje funciona como:

“uma espécie de sistema de convergência de interesses, fazendo com que o racismo, de um lado, implique a subalternização e destituição material e simbólica dos bens sociais que geram respeito e estima social aos negros – ciclo de desvantagens – e, de outro, coloque os brancos imersos em um sistema de privilégios assumido como natural, como norma.” (PIRES e SILVA, p. 66)

Assim, o conjunto de preconceitos direcionados à população negra encontra-se enraizado no inconsciente e na subjetividade de indivíduos e instituições, se expressando em ações e atitudes discriminatórias regulares, mensuráveis e observáveis. Violência policial atingido na grande maioria das vezes a população negra, maior número de mortes proporcionalmente aos doentes na atual crise da Covid-19 e todos os dados de desigualdade na educação já mencionados são alguns exemplos.

Ao mesmo tempo, muitos avanços foram conquistados ao longo das últimas décadas a partir da luta histórica dos movimentos negros, que muitas vezes não é visibilizada devido ao mesmo racismo que ousa enfrentar. A professora Nilma Lino Gomes, em recente seminário on-line promovido pela Fundação Santillana , apontou:

“Fica parecendo que no Brasil tudo acontece sem conflito, mas nós somos uma sociedade em ebulição. Isso tem sido mostrado nos últimos tempos, mesmo que se inspirando contraditoriamente na realidade estado-unidense.”

Conforme apontou o antropólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele Munanga, parte da mudança está na desconstrução do mito da superioridade branca e da inferioridade negra e ameríndia que atravessa todos os campos da educação, informação e imagem, reproduzidas cotidianamente e interiorizadas por toda a sociedade. De acordo com o antropólogo, é na educação principalmente que se constroem essas imagens estereotipadas e discriminatórias do sujeito e da população negra, de modo que apenas a prática educativa tem o poder de desconstruí-las: “Só a própria educação é capaz de desconstruir os monstros que criou e construir novos indivíduos que valorizem e convivam com as diferenças.”

O impacto do racismo no acesso à escola

Hoje em dia, as escolas possuem marcas dessa história e os indicadores educacionais são reflexo de uma situação muito comum para os jovens negros: a de precisar buscar inserção no mercado de trabalho muito cedo, como forma de colaborar para a subsistência do grupo familiar.

Conforme a educadora e gestora da educação Macaé Evaristo, esse conflito entre o trabalho e a escola e, por consequência, a evasão escolar, é uma das marcas da desigualdade racial no Brasil:

“Os jovens ainda vivem muito um conflito entre educação e trabalho em que as condições de vida impõem a opção pelo trabalho. Precisamos investir em melhores condições de atendimento a essa população”, explica. Além disso, essa população é maioria nas escolas com menor estrutura, o que favorece a evasão e o baixo desempenho na aprendizagem. “Os jovens das comunidades mais vulneráveis têm acesso a escolas com infraestrutura mais precária, que no geral têm profissionais de educação sem a formação desejada nas áreas do currículo demandadas para o Ensino Médio”, conclui Macaé Evaristo.

Para a intelectual negra Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, o racismo estrutural presente nas escolas gera situações traumatizantes para os estudantes negros.

“O pós-abolição não restitui essa humanidade retirada – a escola reitera isso. Não é gratuito que nossas primeiras experiências com o racismo têm a ver com a entrada na escola”, afirma.

Leia o artigo completo da seção Em Debate do Observatório da Educação através deste link para saber mais sobre as reflexões de Macaé Evaristo e Sueli Carneiro na construção de projetos e práticas educativas que combatam a desigualdade racial na educação

Diante de tudo isso, o abandono e o baixo desempenho na educação básica seguem muito mais altos para os estudantes negros, uma situação que ainda carece de políticas públicas efetivas, mas que vinha apresentando avanços, principais no âmbito legal, como a Lei 10639 de 2003.

A Lei 10639: História e cultura africanas na sala de aula
Além dos pontos já abordados, a própria construção curricular das escolas favorece a manutenção da desigualdade. Ao longo da construção do sistema educacional brasileiro, a seleção e estruturação dos conteúdos escolares foi organizada por uma perspectiva eurocentrada, na qual a visão da população branca foi priorizada em detrimento das outras etnias e culturas. Assim, os negros, mais da metade da nossa população, não se veem representados nos conteúdos lecionados.

“Quando uma cultura se impõe sobre a outra – como aconteceu no Brasil – é ela que fala. Há, portanto um lugar de poder. Você forma crianças (brancas, negras, indígenas) para pensar o branco, o negro e o indígena de uma determinada forma. Você cria um imaginário, criado em crianças brancas, negras e indígenas que irão ocupar diferentes lugares sociais. A hierarquização irá acontecer, e ao final você tem violência e conflitos raciais. A escola tem um lugar determinante na construção do imaginário” explica a pesquisadora Cida Bento, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade.

Nessa perspectiva, a Lei 10639, de 2003, foi uma conquista importantíssima para adotar perspectivas mais democráticas e diversas. Construída a partir de inúmeras manifestações dos movimentos negros, a lei estabeleceu a obrigatoriedade de conteúdos sobre a história e cultura africana e afrobrasileira nos currículos da Educação Básica

Porém, a simples abordagem de conteúdos não é suficiente. Sem uma avaliação que coloque a representatividade, o racismo, a diversidade e outros temas em debates alinhados com sujeitos historicamente excluídos, não colocaremos a discussão das relações étnicorraciais no centro do processo de construção curricular. Sem esse tipo de debate e inclusão, a escola pode seguir sendo apenas mais um espaço de reprodução de desigualdade racial na educação e instigar inclusive situações e discussões violentas entre diferentes grupos raciais.

Acesse o artigo completo “Currículo, desigualdades e diversidades no Ensino Médio” da seção Em Debate através deste link e saiba mais sobre as discussões para a inclusão de grupos historicamente excluídos no centro da construção curricular.

O papel da gestão escolar no combate à desigualdade racial

Conforme abordado neste artigo da seção Em Debate do Observatório de Educação, a educação antirracista é um conjunto de ações que não se limitam a resolver os conflitos cotidianos motivados por questões raciais. Assim, construir essa educação implica necessariamente a revisão do currículo, garantindo sua pluriversalidade, bem como a composição de um corpo docente etnicamente diverso e formado em competências curriculares que abranjam a cultura e a história de povos africanos e ameríndios.

Nessa perspectiva, o gestor tem papel fundamental para desenvolver meios que possibilitem a construção dessa representatividade e a redução do preconceito de forma mais ampla, estabelecendo uma educação antirracista mais efetiva do que a simples inserção de conteúdos nos currículos. Na Escola de Ensino Fundamental Godofredo Acrisio Ericeira, no município de Bacabal, no Maranhão, foi realizado um trabalho combinando esses conteúdos curriculares com o resgate dos saberes escondidos na memória dos mais velhos, construindo conhecimentos valorizando a característica quilombola da comunidade onde a escola está inserida. Confira o depoimento da gestora Clarice Morais Araújo sobre a iniciativa.

 

O papel do docente e o acesso ao Ensino Superior

Apesar do avanço no debate do racismo e da valorização da diversidade cultural proporcionado pela Lei 10639, ela ainda encontra algumas barreiras, sobretudo na rede pública. Além da falta de livros didáticos adequados aos temas, problemas na formação de professores contribuem com as dificuldades já enfrentadas.

Em muitos casos, a formação curricular das universidades também possui uma perspectiva eurocentrada, visto que a construção dela tem como base pesquisadores brancos, já que a presença de outras etnias foi muito pequena no meio acadêmico durante vários anos. A partir de ações afirmativas, como as cotas para ingressos de negros, indígenas e pessoas de baixa renda nesses espaços, esse cenário apresentou uma melhora.

Fundamentais para proporcionar acesso ao Ensino Superior a esses grupos, as cotas foram instituídas nacionalmente nas universidades públicas em 2012, com a Lei 12711. Além de buscar tornar o acesso ao ambiente acadêmico mais equânime, a presença de negros e indígenas é fundamental para promover a valorização da diversidade cultural e construir conhecimentos que colaborem com a aplicação da Lei 10639, ajudando a promover uma educação antirracista nas escolas do Brasil.

O ex-ministro da Educação, Aloizio Mercadante, explica o longo processo de negociação política para a efetivação da Lei 12711 e os impactos dela no desempenho e na construção do conhecimento das universidades.

 

 

Preparação docente para uma educação antirracista

Naturalmente, o impacto dessa democratização de acesso ao Ensino Superior terá impactos na educação básica no longo prazo, sobretudo com a inclusão de mais professores negros. De acordo com um estudo de 2016 da Universidade John Hopkins, professores brancos possuem menos expectativas positivas quanto ao futuro profissional e acadêmico de alunos negros, o que favorece o desenvolvimento de situações de conflitos ligados a discriminação racial. Concretiza-se, assim, uma profecia autorealizadora, na qual os alunos que os educadores acreditam que não aprenderão, ou aprenderão pouco, no final da trajetória efetivamente não obtêm o sucesso acadêmico diante do apoio que foi sonegado.

Diferença de expectativas entre professores brancos e negros com o futuro de estudantes negros.
Fonte: Universidade John Hopkins

Enquanto isso, é fundamental que os gestores das escolas desenvolvam ações de preparação dos professores para explorar os temas previstos na Lei 10639, promover debates relacionados à diversidade cultural e saber como identificar e minimizar a ocorrência de situações de racismo.

Na EEB Ildefonso Linhares, em Florianópolis (SC), o diretor Sérgio Bertoldi desenvolveu ações de combate ao preconceito racial que tornava o ambiente escolar repleto de conflitos. Começando pela preparação dos professores, o projeto evoluiu para ações em parceria com a comunidade, unindo alunos, educadores e famílias para fomentar a importância da população negra na construção do País, em especial nas artes e na cultura brasileiras.

 

Soluções de gestão para o combate à desigualdade racial na educação

Como você pode notar, a desigualdade racial na educação brasileira é complexa e com muitos desafios para ser combatida. Entretanto, muitos profissionais da educação vêm buscando e implementando diferentes estratégias que buscam valorizar a diversidade e combater o racismo.

Por isso, separamos mais algumas iniciativas que já estão fazendo a diferença para o combate à desigualdade racial, que podem servir de inspiração a gestores que estão começando a pensar meios de inserir suas escolas nessa luta e também a todos que queiram fomentar esse debate em seus espaços de fala. Confira!

 

1. Diálogo e valorização da cultura negra
A EMEF Oziel Alves Pereira, de Campinas, no estado de São Paulo, os conflitos gerados pelas diferenças raciais foram reduzidos institucionalizando diálogos sobre africanidades e valorização da identidade através de oficinas de tererê, que valorizam a beleza do cabelo de alunos e alunas negras.

 

2. Oficinas e exposições extraclasse para o combate ao preconceito
Na EEB Cel Antonio Lehmkuhl, o bullying motivado pelas diferenças entre os alunos foi combatido através de oficinas extraclasse e exposições de trabalhos construídos através de filmes, músicas e leituras orientadas, possibilitando uma construção diferenciada da ideia de preconceito e reduzindo conflitos.

 

3. Participação estudantil como ferramenta de motivação
A EEEP Emmanuel Oliveira de Arruda Coelho, no município de Granja, no Ceará, enfrentava uma situação de desmotivação e dificuldades de aprendizagem de vários estudantes, comum entre alunos negros e que vivem em condições socioeconômicas difíceis. Assim, foram desenvolvidas técnicas de gestão que incluíssem os educandos no processo de construção do ambiente escolar, levantando ideias de projetos, desenvolvendo lideranças e valorizando o diálogo deles com a direção da escola.

 

4. Representações negras na literatura e nos desenhos animados
Os livros infantis e os desenhos animados atuam na formação da identidade e do aprendizado das crianças. Nessa perspectiva, a série de livros “Nana e Nilo” tem como protagonistas duas crianças negras que viajam o Brasil e a África explorando vários temas educativos. Disponível também em animações presentes em várias plataformas, Nana e Nilo colaboram para a auto-estima das crianças negras, bem como o orgulho de sua beleza, história e identidade. Confira a entrevista com seu criador, Renato Noguera.

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