Desigualdades estruturais ainda promovam o silenciamento de negros, mulheres e periféricos no Brasil
Da Fundação Tide Setubal
O segundo dia de atividades do seminário “Democracia, Educação e Equidade: uma agenda para todos” colocou em pauta um tema transversal que percorre todas as agendas do desenvolvimento sustentável: as desigualdades de raça e de gênero. Ou seja, a abissal diferença de oportunidades disponíveis para homens e brancos em relação a mulheres e negros no Brasil.
Parece desnecessário provar, recorrendo a números e pesquisas de fontes referendadas, o cenário de desigualdades no maior país da América Latina. Se necessário for, os dados são diversos. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2017, a renda média salarial de um branco no Brasil foi de R$ 2.814; uma pessoa negra ganhou em média R$ 1.606.
A taxa de analfabetismo é mais do que o dobro entre pretos e pardos (9,9%) em comparação com brancos (4,2%). De acordo com o Atlas da Violência 2017, a população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10% de indivíduos com mais chances de ser vítimas de homicídios. A mesma pesquisa aponta que a taxa de homicídios de mulheres negras em 2016 foi 71% superior à de mulheres não negras.
Para a professora do departamento de sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole, Márcia Lima, participante da mesa “Desigualdades de raça, de gênero e nas periferias urbanas e a emergência de novos agentes políticos”, só não vê – e encara – a realidade quem não quer.
De cara, a docente e pesquisadora deixou claro que as reflexões que levou para o seminário levam em conta a conjuntura pós-eleições de 2018. “[Trata-se de] um momento delicado. Vivemos um cenário nacional e internacional de desafios cuja principal marca é o retrocesso da agenda de direitos, agenda essa construída a duras penas por diversos movimentos sociais.”
Sua fala é um chamado no sentido de recuperar a participação dos negros e dos movimentos negros no debate sobre democracia e equidade. Para ela, são duas dimensões neste espectro: a desigualdade como fenômeno multidimensional e persistente, que exige políticas públicas para além das práticas afirmativas, assim como a própria agenda de direitos em si, com suas questões distributivas e identitárias.
O debate sobre democracia, educação e equidade passa, fundamentalmente, pela escola, espaço de construção social que recorrentemente reproduz as estruturas de exclusão e silenciamento de minorias. “As organizações imitam modelos excludentes da sociedade. No ambiente escolar se vê, claramente, essa reprodução. Trata-se de um espaço que discrimina de maneira muito forte.”
Os exemplos são muitos: a baixa representatividade de pessoas negras em ambientes escolares, especialmente no Ensino Superior – são poucos os professores, diretores, reitores, cientistas, etc. negros -, e a produção científica e intelectual negra e de mulheres é pouco valorizada. Márcia provocou: “Onde está a literatura negra nas escolas?”
E, como aponta o Preâmbulo da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável – “nós nos comprometemos a que ninguém seja deixado para trás” -, o desafio atual é compreender os mecanismos indutores de desiguldade, combatê-los, para que todos, sem excessão, possam ter seus direitos garantidos.
“Sem enfrentar esses processos e essas violências todas, sem acabar com modelos institucionais e olhar para as políticas publicas, não dá para discutir desigualdade. Temos de lutar contra as desvantagens predeterminadas e o isolamento social provocado pelo racismo estrutural. Precimos exercer o enfrentamento sistemático da desigualdade”, afirmou a professora Márcia Lima.
Protagonismo das mulheres negras
Flávia Rios, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Guerreiro Ramos, fez um exercício matématico, uma soma simples de características: “No Brasil, o cruzamento de ser mulher, negra e de periferia, representa uma conta que te coloca na linha de frente da violência.”
Sua pesquisa se dedica a pensar como o tema das relações raciais e de gênero se articulam nos últimos 40 anos. De acordo com a professora, são indiscutíveis as conquistas e a institucionalização de toda a política de igualdade racial realizada por mulheres negras.
“Meu olhar é para o protagonismo das mulheres negras na nossa história. São algumas gerações que vêm mudando a história deste país. A primeira, dos idos de 1975, é a que rompeu barreiras. Foi a primeira geração de mulheres negras dentro das estruturas de poder. A segunda, dos anos 2000, é marcada pela chegada das meninas na universidade pública. A terceira é formada por mulheres negras mais jovens menos presente nos empregos domésticos brasileiros e empoderadas por recursos de comunicação e tecnologia.”
De novo, a narrativa aqui é a importância da representatividade e do esforço em mapear, reconhecer e valorizar as conquistas de indivíduos e movimentos pelos direitos humanos para combater desigualdades estruturais que são seculares nos limites brasileiros.
A regra e a exceção
O discurso da meritocracia também cai por terra quando histórias como a de Enderson Araújo emergem dos subúrbios brasileiros. O menino, filho de mãe solteira, que reprovou a quinta série quatro vezes porque precisava trabalhar, viveu a escassez de comida em casa e, segundo ele, conseguiu ter o mínimo graças a programas de repasse de renda do governo, hoje é uma referência em comunicação e empreendedorismo. “Mas, as oportunidades não são as mesmas para todo mundo”, lembrou.
Enderson é criador do Grupo de Comunicadores Jovens Mídia Periférica e hoje atua em múltiplas plataformas de comunicação. Mas, até virar exceção, foi regra. “Todo jovem na comunidade vive sob a condição do imediatismo. Ensino Médio? Não. É o primeiro emprego. A pressão para trabalhar. Antes de sermos violentos, somos violentados. Na periferia falta educação, acesso a transporte e condições de moradia.”
Hoje, às vésperas de adentrar o Ensino Superior, lembra de que as desigualdades entre as pessoas do centro e da periferia, do morro e do asfalto, da roça e da cidade são muitas. Se o sujeito for negro, então, a questão é ainda mais complexa. “O que eu via nos programas policiais da televisão é uma imagem do tempo escravocrata: o capitão do mato correndo atrás do escravo fujão. Aí eu vi que precisava contar o que via de bom dentro da comunidade, e ia para a lan house pra contar essas histórias. Ali começou a minha virada.”
Leia mais sobre as atividades do primeiro e do segundo dia do seminário aqui.