Desmitificando a data da suposta libertação

*Freitas Bahia

Pintura feita pelo alemão Johann Moritz Rugendas, em 1830, mostra interior de navio negreiro, que chegava ao Brasil com escravos africanos (Foto: Johann Moritz Rugendas/Creative Commons)

 

Estamos no mês em que se completa 121 anos do momento histórico que acabou juridicamente com a idéia de que a servidão do negro pela coroa de Portugal. Princesa Isabel assina um documento, que em tese, libertava àqueles dos quais descendemos quase três séculos de servidão escrava. Será que aquela assinatura resolveu a situação da população advinda de África e que até seus descendentes vivem neste país? Qual foi a verdadeira razão que motivou a princesa subscrever a Lei?

A assinatura da lei Áurea no dia 13 de maio de 1888 serviu para libertar cerca de 750 mil escravos que ainda existiam no Brasil e proibia a escravidão. Foi um dos fatos de maior alcance e visibilidade no país, no que se refere ao tema das disputas pela memória e de seus significados políticos, depois disso só o movimento das Diretas Já que culminou no fim da ditadura militar, pode ser tão igual comparado.

Essa data e o 20 de novembro colocam a população a refletir sobre a situação do povo preto no país. Rediscutir o passado nunca foi, nem nunca será uma tarefa fácil. Principalmente o passado de uma parcela da população brasileira que teve documentos queimados (nomes, origens, legados foram obliterados) e as suas as revoltas escravas eram marginalizadas.

É a partir de meados do século 18 que um discurso abolicionista vai emergir no pensamento ocidental, questionando progressivamente a legitimidade da escravidão unindo-se ao parlamento. No Brasil, vai estar presente, desde finais deste século, no questionamento da continuidade do tráfico de escravos e na crítica às distinções raciais entre a população livre, empolgando as camadas populares urbanas presentes nos setores mais radicais que se ligaram às lutas pela emancipação política e econômica.

Vale lembra que com o fim do tráfico da população negra de África, em 1850, elevou-se o preço do cativo, tornando seu acesso restrito às camadas superiores da agricultura de exportação, golpeando de morte esta cumplicidade do conjunto da população livre com o trabalho servil, construindo as bases para que o abolicionismo se tornasse um grande movimento popular. Desde então, a crescente pressão pela alforria, no seio da população escravizada, só fez aumentar a presença afrodescendente na população livre de uma maneira geral. Precedida por fugas em massa, a Lei de 13 de maio nada mais fez do que reconhecer formalmente a liberdade, já conquistada de fato nos meses precedentes, culminando o maior movimento de desobediência civil da história brasileira.

Mas como diz um provérbio africano: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.

Independentemente disso, não se pode deixar de reconhecer que a abolição não resolveu diversas questões essenciais acerca da inclusão da maior camada populacional na sociedade brasileira. Depois da lei Áurea, o Estado brasileiro tomou poucas medidas que favorecessem sua integração social, abandonando-os à própria sorte. De lá pra cá só consigo lembrar a criação da SEPPIR, Lei 10639/03 logo depois substituída pela lei 11645/08, que inclui a cultura indígena no currículo escolar e o estatuto da Igualdade Racial, sendo este esperando aprovação.

Deveríamos aproveitar esta data para revisar o que ainda não foi reparado a essa população, mesmo após a assinatura da Lei Áurea e isso deve ser feito a cada 13 de maio que passar. É hora de comprometermos com uma reflexão constante sobre nossas práticas, como muitos antes de nós o fizeram. Vamos construir, e (re) construir o negro e a negra diariamente, questionando o nosso passado e traçando metas para um futuro mais justo.
O estado brasileiro precisa assinar um documento que se tenha igualdade na diferença, respeito à diversidade humana e a promoção do desenvolvimento humano.

A população e em especial o movimento negro com certeza continuarão nas lutas: Pela aprovação dos estatutos de promoção da igualdade racial em todo os estado e em nosso país, pela real aplicação do ensino e da cultura africana nas escolas e nas universidades, pelo o acesso ao trabalho e salários iguais para todos/as, por uma melhor abordagem policial e pelo fim do extermínio da juventude negra, pelo fim do próprio trabalho escravo que ainda existe em todo continente, na luta por um currículo escolar menos eurocêntrico e mais multicultural e multirracial, por melhores livros didáticos e por um ambiente racialmente mais democrático nas escolas.

Façamos dessa data momento de luta, usemos esse dia para ressaltar nossa trajetória de inconformismo. Esse mesmo inconformismo que nos leva a realizar pequenas e grandes revoluções em nosso cotidiano, na interação com nossos familiares, em nossos ambientes de trabalho, em nossa sociedade.
Continuemos a considerar o 20 de novembro como a grande data de celebração no Brasil de uma comunidade étnica – a dos descendentes de África que aqui chegaram escravizados. Data do assassinato de Zumbi, símbolo poderoso para sinalizar as condições de desigualdade em que a maioria dos africanos/as chegou ao Brasil e para atuar como catalisador na luta contra a discriminação racial daí decorrente. Líder do maior e mais duradouro quilombo do Brasil colonial. Zumbi dos Palmares se apresenta hoje como o grande herói da resistência à escravidão, verdadeiro arquétipo da não submissão dos/as escravos/as africanos/as ao cativeiro.

Como descendentes de África. Somos a prole de homens e mulheres dignos arrancados de seus lares e acorrentados em navios como animais. Somos os herdeiros de um grande e explorado continente. Somos os herdeiros de um passado com os maiores crimes aos direitos humanos e maior chacina da humanidade. Não devemos ter vergonha desse passado. Devemos ter vergonha sim, daqueles que se tornaram desumanos a ponto de torturar-nos, roubar nossa cultura e se enriquecerem com o nosso suor.

{yootooltip title=[Freitas Bahia: passe o mouse] width=[250] mode=[cursor] sticky=[1] display=[block]}*Freitas é filho de Osún, membro do fórum de juventude negra da Bahia, educador social, estudante de ciências Sociais pela UFBA e membro do grupo de jovens de religião de matriz africana Oba’byan N’ganga N’dumbe e Filiado ao partido dos Trabalhadores.{/yootooltip}

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