Djaimilia Pereira de Almeida

Nascida em Angola, em 1982, Djaimilia Pereira de Almeida mudou-se para Portugal ainda criança, lugar onde cresceu e vive até hoje. Em 2015, fez sua estreia literária com o livro Esse cabelo (Teorema Editorial, não lançado no Brasil), muito elogiado pela crítica de seu país, mas ainda sem edição brasileira. Doutora em Estudos Literários pela Universidade de Lisboa, a escritora comenta que precisou colocar em suspenso o saber acadêmico durante o seu processo criativo ou, como registra na publicação, se sentiu exigida a “deixar a literatura à porta”.

por Gianni Paula de Melo, do Pernambuco 

Sua ficção, que agrega elementos ensaísticos e biográficos, é o assunto central dessa entrevista concedida por e-mail ao Pernambuco. Tomando o seu cabelo como marco identitário, Djaimilia constrói uma narrativa sobre origem e ancestralidade ao mesmo tempo que elabora uma crítica muito atual associada ao feminismo e ao empoderamento das meninas e mulheres negras. Um livro que se mostra poderoso e necessário, que pode somar aos debates sobre embranquecimento compulsório e ao entusiasmo com a transição capilar e a valorização do fio crespo.

Sem se preocupar em ocupar o lugar da militância, o livro “apenas” dá voz a uma experiência de mundo particular que recupera as vozes do seu passado, historicamente silenciadas. Acima de tudo, trata-se de uma leitura na rota do oroboro, daquelas que não nos deixa esquecer, como diz a autora, que pouco importa o que encontramos na busca por nós mesmos e pelo nosso lugar de mundo. Importa continuar a procura.

Em que contexto surgiu a ideia de escrever o livro Esse cabelo?

O Esse cabelo surgiu a partir de uma mistura de leituras com discos que ouvi a certa altura. Vem da fusão inesperada entre Kanye West e Walter Benjamin, de quem, em 2012, li Infância em Berlim por volta de 1900.

Você já declarou em entrevistas que lhe interessa a confusão entre ficção e realidade. Na sua escrita, chama atenção o hibridismo entre o literário, a memória e o ensaístico. De que forma você gostaria que seu livro fosse lido?

Enquanto escrevi o Esse cabelo, pouco ou nada me preocupou em que gênero caberia o que estava a escrever. Acho que o mesmo vale para os leitores. Sinto-me tão à vontade com a ideia de que se trata de um ensaio ficcionado como com as pessoas que o interpretam como um romance ensaístico. O “gênero” parece-me uma categoria pouco interessante, e enquanto leitora, sou-lhe bastante indiferente.

Por que “o livro do cabelo exigiria o esforço de deixar a literatura à porta”?

Para escrever este livro, que surge na minha vida após uma década a estudar literatura academicamente, precisei de suspender por algum tempo muito do que aprendi, o que inclui tanto a angústia em relação ao que li, como em relação ao que ainda não li. Sendo um esforço inglório, talvez seja o maior empreendimento: o de esquecer o que se sabe, pudesse alguém consegui-lo, para depois deixar que tudo assome de novo, sob uma nova forma, conhecida e estranha, ao mesmo tempo.

A obra em questão é sobre origem, ancestralidade, raiz. Como se deu o exercício de recuperar as narrativas familiares?

O livro foi escrito menos a partir de narrativas reais, mas sobretudo a partir de rumores sobre o passado que correm na minha como em todas as famílias. Se nos deixarmos levar por esses rumores, rapidamente nos apercebemos de nós e das nossas pessoas mais próximas como um rumor também, sobre o qual sabemos pouco ou nada. Talvez a humildade de me entender como um rumor tenha sido a coisa mais importante que me ensinou o Esse cabelo, a esta distância.

No livro, você menciona como um novo estereótipo possível o Homem de Tradição Invisível. Quem seria esse homem?

A expressão surge no livro em relação a Castro, o avô materno da narradora: um imigrante angolano que teria vivido em Lisboa desde o fim da década de 1980, morrendo em Portugal. A tradição de Castro, como a de muitos homens como ele, é desconhecida para a maioria de nós, comigo incluída. E assim nunca sabemos bem de onde vem nem quem é aquele velho negro e andrajoso que se senta ao nosso lado no ônibus, como também eu sei tão pouco sobre o meu próprio avô materno. Integração também tem a ver com curiosidade, com querer falar com o estranho que se senta ao nosso lado todos os dias, e com quem nunca nos preocupamos em saber de onde veio. Foi o que tentei fazer.

Uma chave central na obra é a da vilania estética associada ao preconceito. Em determinado momento, você menciona a “custódia partilhada” do seu cabelo como se as pessoas se vissem diante de um problema a ser solucionado. Você acredita que existe mudança expressiva entre a sua experiência da infância nesse sentido e a das meninas negras de hoje?

Em Portugal, diria que sim. Hoje em dia, fala-se nisso, e há um movimento significativo de raparigas para quem ter um cabelo afro é um motivo de orgulho. A minha experiência leva-me a pensar que esse orgulho só pode ser atingido como uma conquista coletiva que por aqui tem passado pela criação de uma comunidade espontânea de raparigas que têm experiências semelhantes, e se encontram, e partilham histórias e dicas, numa onda de energia e alegria realmente extraordinária, e inimaginável há uma década, se tanto.

Em determinado momento, é escrito que o desapontamento com o cabelo levou a uma transmutação da estética em moralidade. Qual o efeito dessa transmutação?

Essa transmutação tem a ver com a maneira como, por vezes, o mal-estar com o nosso corpo semeia em cada um juiz de si mesmo especialmente austero, que é o primeiro a dizer-te de manhã que o teu corpo não tem remédio. O que era do domínio da beleza passa a ser do domínio da moral, sem que seja preciso sequer que alguém de fora te dirija um reparo, como acontece à Mila, e a tantas raparigas, negras e brancas.

Os álbuns e as fotografias também são recorrentes no livro. Qual a importância desses registros para a concepção dessa narrativa?

O livro tentou recorrer à estrutura de um álbum de fotografias parecido aos que temos nas nossas casas, o que se deve muito à maneira como escrevo, tentando legendar imagens que existiram ou não, e que podem ou não fazer parte do livro. Muitas vezes me parece que o que faço é legendar o que não vi, podendo isso ser o que desconheço sobre a minha vida, o meu passado.

“A família a quem devo este cabelo descreveu o caminho entre Portugal e Angola em navios e aviões, ao longo de quatro gerações, com um à vontade de passageiro frequente que, todavia, não sobreviveu em mim (…)”. Essas migrações dos genitores são revisitadas na tentativa de encontrar o próprio lugar no mundo. Que lugar é esse que a Djaimilia ocupa no cruzamento de dois países e de dois continentes?

Nunca acreditei muito que o pudesse descobrir com um livro: não acredito que possa planear a minha auto-descoberta. Acabei por terminar como comecei: nasci em Angola, cresci em Portugal, onde vivi toda a vida, o que é, ao mesmo tempo, tudo o que importa, e coisa nenhuma.

No texto Chegar atrasado à própria pele, publicado na revista Forma de Vida, você fala da descoberta do seu irmão branco que, aos cinco anos, teria declarado: “Tu afinal és preta e nunca me disseste”. Em seguida, abre uma reflexão sobre sua própria descoberta. Quando ocorre essa tomada de consciência?

Em criança, entre outros miúdos, ninguém pensava nisso, de fato. É muito mais tarde que me aconteceu ter uma percepção aguda da minha pele, atraso que considero um luxo, ao mesmo tempo benévolo e nefasto.

Qual sua percepção sobre as trocas entre os países lusófonos hoje e, principalmente, o trânsito da literatura entre esses países? Você costuma ler a produção brasileira contemporânea?

Leio, sim. Tento acompanhar como posso, sabendo que desconheço muita coisa. Nos últimos tempos, li o último de Julian Fuks, Resistência, e Julia de Carvalho Hansen, de quem sou grande admiradora.

Como você avalia a presença da mulher negra no cenário literário de Portugal?

Acredito que há muitas mulheres e homens negros, ainda desconhecidos, a caminho da publicação em Portugal. Alguns juntam-se em tertúlias, leituras, o que há pouco tempo não acontecia. A sua presença é ainda pouco notada, mas duvido que num futuro próximo o cenário se mantenha.

A procura de uma origem não reconstitui a origem. O que conseguimos com essa procura?

Julgo que o ganho de procurar é procurar, interessando pouco ou nada o que se encontra. Ainda que seja difícil contentarmo-nos com a incerteza quando procuramos saber quem somos, a resposta mais profícua, e a mais desconfortável, é chegar ao fim com uma pergunta, e outra, e outra.

Próximo ao fim do livro, você diz que aquela é a única história que acredita ter a incumbência de contar. É um ultimato?

Não, nem sequer a mim mesma. Significa apenas que este é o livro que, no momento em que o escrevi, tinha de tirar dentro de mim, por um imperativo apaixonado.

Existe alguma escrita em processo no momento ou atividades literárias específicas que esteja desenvolvendo?

Estou a escrever, sim, mas ainda muito no começo: ainda estou a explicar a mim mesma o que estou a tentar fazer.

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