Documentário retrata a ocupação secundarista nas escolas do Brasil

Por NAIARA ALBUQUERQUE, da Revista Galileu 

Com uma ideia na cabeça e uma câmera na mão. Foi assim que Eliza Capai começou a produzir seu novo documentário ‘Espero tua Re(volta)’, uma das cinco produções brasileiras selecionada para a 69ª edição do Festival de Berlim, com início em 7 de fevereiro e com estreia dia 9. O filme deve chegar ao Brasil no segundo semestre de 2019.

O filme de Eliza transita por muitos momentos da história política brasileira. Com imagens de arquivo, o longa mostra momentos marcantes de nossa história política recente. Manifestações contra o aumento da passagem, ainda em 2013, passando pela reeleição e impeachment de Dilma Rousseff, em 2014 e 2016, respectivamente, até a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018.

Além desse pano de fundo, a documentarista decide mostrar a movimentação dos secundaristas, desde 2015, a partir da vida de três personagens: Marcela Jesus, Lucas “Koka” e Nayara Souza.

Questões LGBT, de raça e gênero são levantadas pelos três personagens. A escolha não foi nada aleatória, conta Capai. “Eu entendi que a representatividade era uma questão central para o filme. Na ocupação da Alesp, por exemplo, quando eles [os estudantes]tiveram que sair do prédio, decidiram eleger uma menina negra para para ler o jogral em uma coletiva de imprensa e isso não foi por acaso”, conta.

A ideia, como explica Capai, é mostrar a movimentação de uma geração que nasceu em um país democrático. “Nós vemos no filme meninos que cresceram em um momento que o Brasil crescia. Foi assim que essa molecada teve contato com a nossa democracia, a partir de políticas públicas focadas na inserção social, como as Cotas, o Prouni e o Bolsa Família”, diz.

O movimento dos secundaristas, que ocupou centenas de escolas em São Paulo, surgiu em resposta a reorganização escolar proposta pelo então governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin. Seu projeto  pretendia fechar cerca de 90 escolas e remanejar 300 mil alunos. Após a pressão estudantil da época, o projeto foi revogado.

Além de ‘Espero tua Re(volta)’, a jornalista já produziu dois longas: ‘Tão Longe é Aqui’ (2013) e ‘O Jabuti e a Anta’ (2016). Por telefone, a documentarista conversou com a GALILEU sobre sua intenção de representar as vozes do movimento estudantil e o processo até a finalização do filme.

Durante quanto tempo você acompanhou o movimento estudantil, das manifestações às ocupações, que é mostrado no filme? Você era o único veículo presente nesses momentos?
Eu comecei a documentar com a minha câmera a partir de maio de 2016, quando aconteceu a ocupação da Alesp [Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo] pedindo a CPI da merenda e foi ali que eu me apaixonei pelo tema. Como eu não estive cobrindo o movimento desde o início, assisti muito conteúdo na internet e peguei o material bruto, principalmente, de dois documentaristas que acompanharam muito de perto as ocupações em 2015: o Caio Castor e o Henrique Cartacho. Nas ocupações que eu estive, em 2016 e 2017, tinha muita mídia ativista, como o Jornalistas Livres e o Mídia Ninja. Já no congresso da UNE [União Nacional dos Estudantes], com mais de 10 mil estudantes, eu não vi nenhuma grande mídia cobrindo o que estava acontecendo e fiquei surpresa.

MARCELA JESUS, NAYARA SOUZA E LUCAS “KOKA” PENTEADO (FOTO: CAROL QUINTANILHA)

No início, qual era a sua ideia para o documentário?
Eu queria poder imaginar e retratar um jovem a partir de sua narrativa e das coisas que ele estava vivendo. A ideia que me norteava era de ser um filme multitask, com várias coisas acontecendo ao mesmo tempo.

Como foi a escolha das vozes no documentário? E onde estaria a sua própria voz, como documentarista, nisso tudo? 
Eu pesquisei e entrevistei muitos estudantes para entender quais eram as questões centrais das lutas estudantis desse momento. Eu entendi que a representatividade era uma questão central. Por exemplo, na ocupação da Alesp, quando eles tiveram que sair do prédio, os secundaristas decidiram eleger uma menina negra para para ler o jogral em uma coletiva de imprensa, e isso não foi por acaso. A representatividade foi uma das questões que guiou a escolha desses locutores, assim como o debate de gênero sobre quem assinava a luta, autonomistas ou entidades, era também muito forte. Além disso, a questão racial foi também ultra importante. Esses foram os principais pilares para entender quem deveria contar toda essa história.

O meu lugar no filme, como documentarista, está em todos os lugares. Esses personagens são escolhas e toda a construção narrativa é uma escolha. A minha escolha como diretora, nesse filme, era conseguir reverberar essas vozes. Eu busquei a melhor forma para que essa história fosse interessante, que conseguisse falar com jovens, e que ao mesmo tempo se mostrasse complexa para evidenciar o momento social e político que estamos vivendo.

O filme tem muito material de off dos personagens e cenas produzidas posteriormente. Como foi isso? Eles toparam desde o início todo esse processo?
O que eles [os personagens] mais queriam era dar voz para todos os estudantes que participaram dessa luta. Os três eram abertos e foram muito generosos no processo de construção do filme, que começou a ser roteirizado a partir das entrevistas, com eles e outros estudantes. Foi só a partir desse processo que íamos para o estúdio. O filme é uma grande montagem e ele tenta evidenciar isso.

A truculência policial é recorrente no documentário, com muitas cenas explícitas. Isso atrapalhou o seu trabalho de alguma forma?
A maioria das cenas de truculência não foi eu quem gravei, foi gravada por Caio Castor. Agora, eu acho importante pontuar essa violência da polícia, que é representante do Estado. Pra mim, é um símbolo muito forte mostrar como esse Estado trata quem está lutando por educação. É tão desproporcional o uso de força do Estado com aqueles meninos, que eram menor de idade. “Por que isso aconteceu? Que Estado é esse? Que polícia é essa que faz isso?” Foram algumas perguntas que nos norteou no processo do filme.

A impressão que o filme dá é que a ocupação dos secundaristas foi um momento de gota d’água e de indignação. Foi isso mesmo? O que você sentiu estando lá? 
Acho que tem uma questão geracional muito forte no filme. Eu, por exemplo, nasci na ditadura militar e cresci com pais que foram do movimento estudantil durante a ditadura militar. Meu pai foi preso e torturado, e acabou saindo do Brasil exilado. Eu cresci com essas narrativas sobre a importância da luta e, ao mesmo tempo, o preço que se paga por ela. E eu, bem pequena, vi o fim dessa ditadura e o início da democracia. Essa é a minha geração, que cresceu com narrativas muito cruéis. Quer dizer, uma parte da minha geração cresceu com essas narrativas muito cruéis.

Agora, o que nós vemos no filme são meninos que cresceram em um momento que o Brasil crescia. O Brasil já era uma democracia estabelecida e já tinha uma moeda estável. Foi assim que essa molecada teve contato com a nossa democracia, a partir de políticas públicas focadas na inserção social, como as Cotas, o Prouni e o Bolsa Família. Eles questionam muitas coisas: “Que papo é esse que preto ainda ganha menos? Que papo é esse que por ser preto a gente tem batida policial todos os dias? Que papo é esse que como mulher a gente ganha menos e como mulher preta a gente ganha menos ainda?” Eles vêem como é errado tudo isso, e o filme tenta mostrar como é crescer com esse mínimo de direitos.

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