por Leonardo Sakamoto,
“Não nos importamos com os mortos e desaparecidos políticos? Hoje somem Amarildos. Não nos importamos com a tortura de presos políticos? Hoje jovens negros, pobres e da periferia são torturados, todos os dias, da mesma forma. O que buscamos mostrar no filme é exatamente isso: que a impunidade do passado dá carta branca à impunidade do presente.” O depoimento é de Paula Sacchetta, co-diretora do documentário “Verdade 12.528″, que trata da importância da Comissão Nacional da Verdade, através de depoimentos de vítimas da repressão, ex-presos políticos e outras pessoas afetadas direta ou indiretamente pela Gloriosa entre 1964 e 1985. O doc estreia na 37a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo neste sábado (19).
O documentário, batizado com o número da lei que criou a Comissão (12.528/2011), gravou depoimentos em São Paulo e na região do Araguaia, onde se desenrolou os conflitos entre a guerrilha de militantes do Partido Comunista do Brasil e as forças armadas.
O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando ou reprimindo parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A verdade é que nos esquivamos de olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje. Lembrar é fundamental para que não deixemos certas coisas acontecerem novamente.
O documentário de Paula Sacchetta e de Peu Robles ajuda a trazer luz às trevas. Que a história da violência sob responsabilidade do Estado durante a ditadura seja conhecida e contada até entrar nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade (ainda que precária e incompleta) do qual desfrutam não foi conquistada de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente. E que falta muito para que a dignidade seja percebida como algo que precisa ser protegida e garantida pelo poder público.
Dona Adalgisa, camponesa que colaborou com a Guerrilha do Araguaia, ouvida pelo documentário
Realizei uma breve entrevista com a Paula, que segue abaixo:
1) Com exceção de alguns grupos, pequenos, mas barulhentos, pertencentes principalmente à classe média, a última ditadura militar não é uma questão presente nos discursos e nas reflexões da maior parte da juventude brasileira. Deveria ser diferente? Por que?
Claro que deveria ser diferente. O que vivemos hoje, o que acontece no Brasil de hoje, no Brasil onde vivem jovens que não haviam nascido na época da ditadura é reflexo daquele tempo. Não nos importamos com os mortos e desaparecidos políticos? Hoje somem Amarildos. Não nos importamos com a tortura de presos políticos? Hoje jovens negros, pobres e da periferia são torturados, todos os dias, da mesma forma. O que buscamos mostrar no filme é exatamente isso: que a impunidade do passado dá carta branca à impunidade do presente. Não é página virada ou coisa do passado, como muitos insistem em afirmar, mas nos diz respeito. Acredito que nós jovens temos que nos indignar por vivermos em um país sem memória, onde torturadores, assassinos e estupradores vivem tranquilos por aí, gozam de aposentadorias de cargos públicos e nunca foram julgados pelos crimes que cometeram. Se a reflexão fosse outra, o Brasil de hoje seria outro. Fora pequenos grupos, essa história deveria ser contada de maneira profunda nas escolas e universidades.
2) É possível descobrir uma Verdade redentora se, por trás do pano escuro da ignorância, a Anistia continua garantindo a liberdade de quem prendeu, torturou, matou? Apenas conhecer a página é suficiente para virá-la?
É impossível descobrir uma verdade única, ou a Verdade, redentora. Por isso a Comissão da Verdade deveria ser uma Comissão da Verdade e da Justiça. Essa Comissão que foi aprovada é muito importante, é um grande passo, mas definitivamente não é o passo final. Estamos começando, quase 50 anos depois do golpe militar, a conhecer nossa história, mas esses assassinos que hoje andam à solta deveriam ser julgados e condenados, como aconteceu em diversos países que nos cercam aqui na América Latina, que prestaram contas de seu passado de horror. Aqui, infelizmente, a nossa lei de Anistia garantiu a impunidade de pessoas que cometeram graves violações de direitos humanos.
3) Você é filha e neta de jornalistas que lutaram contra ditaduras no Brasil. O quanto das histórias que você ouvia ajudaram a construir o Verdade 12.528?
Cresci ouvindo essas histórias em casa, dos horrores da ditadura, mas sobretudo, da resistência contra ela. Me ensinaram em casa que se eu quisesse mudar alguma coisa teria que tentar fazê-lo e me deram a capacidade de me indignar diante da injustiça. E o filme nasceu exatamente daí. Na verdade foi uma ideia do Peu, o outro diretor do filme, que viu que a Comissão ia passar, ia fazer seu trabalho, mas que esse momento tão importante poderia passar em branco, principalmente para os jovens. Nasceu da nossa vontade de fazer os outros jovens como nós conhecerem esse passado ainda desconhecido. O Peu sugeriu um vídeo de cinco minutos, começamos, não conseguimos parar, colocamos o projeto no Catarse – um site de financiamento colaborativo – e aí deu no que deu: um filme de 55 minutos que foi selecionado para um mostra de cinema super importante. O Verdade 12.528, muito mais do que daquelas histórias, nasceu da nossa indignação mesmo, de querer mostrar o quanto essa Comissão de hoje, quase 30 anos depois do fim da Ditadura, nos diz respeito. O documentário vem contribuir com a tentativa de romper a lógica da ignorância, do descaso e da anestesia social, na qual tentaram mergulhar o país naquele tempo, afastando o povo das decisões do país, o que continua sendo feito até hoje. Quem diz hoje que aqueles crimes são “coisa do passado” ou “página virada”, tenta nos manter vendados, acríticos e apáticos em relação a nossa própria história.
Verdade 12.528
Direção e produção: Paula Sacchetta e Peu Robles
Montagem e finalização: André Dib
Música original: André Balboni
?Som direto: André Mascarenhas
Cor: Pedro Moscalcoff
Efeitos: Alison Zago
Mixagem: Gui Jesus Toledo
Produtora de áudio: Estúdio CANOA
?Realização: João e Maria.doc
Cor, 55 minutos
Exibições na 37ª Mostra Internacional de São Paulo
Cinesesc (Rua Augusta): Sábado (19), às 17h20
Cinemateca Brasileira: Quarta (23), às 18h30
Fonte: Combate Racismo Ambiental