Dor negra, bem-estar branco

Se a História é a memória oficial de um povo, a brasileira certamente não dá o merecido valor a contribuição dos africanos sequestrados até aqui. A começar pelos pouquíssimos registros que se tem das terríveis experiências vividas por esses negros escravizados.  O silenciamento dessas vivências nos permite somente imaginar o quão doloroso foi essa experiência, pois nos impede de acessar o horror através dos olhos de quem conseguiu resistir e se fazer ouvir.

Por Fabricio Longo Do Portal Fórum

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Essa ausência de vozes negras permanece ainda hoje, tanto na mídia quanto nos quadrinhos, na literatura, nas artes visuais e outras tantas formas de expressão. Contudo esse vácuo afeta principalmente os saberes teóricos sobre o nosso passado, o impacto psicológico provocado e até mesmo o nosso posicionamento na sociedade. Apesar de alforriados, negros ainda somos vistos, principalmente pelos narradores oficiais da trajetória brasileira, como objeto: de análise, de controvérsia, de escárnio etc. Assim como para boa parte da sociedade o negro ainda representa o Outro – a ser evitado, temido, desejado, exibido, controlado ou silenciado.

Como os eventos históricos geralmente são relatados pelos vencedores, isto é, por aqueles que causaram mais sofrimento, fica bastante fácil entender como vozes negras — assim como de outros segmentos historicamente oprimidos pelas sociedades — são impedidas de se pronunciar sobre os efeitos das opressões que já sofreram e presentemente sofrem. Parte disso se dá pela crença científica de que a dor anularia o senso crítico, de que vítimas de opressão seriam incapazes de compartilharem suas perspectivas sem prejudicar a suposta imparcialidade da versão oficial dos fatos.

Assim, todos acabamos aprendendo que o homem branco é sempre o mais indicado a falar por todos e para todos, como também é o único a ser redimido do legado de culpa de seus ancestrais, que praticaram todo tipo de crimes contra a humanidade em nome de uma civilização superior. Dessa forma, esses homens brancos ao se apropriarem das manifestações de sofrimento e resistência acabam sendo redimidos das barbáries que os seus iguais cometeram pois, benevolamente, assumiram o papel de observadores críticos empenhados em registrar o passado isentos de sentimentalidade.

Portanto, caso ainda seja incompreensível porque se argumenta que a povo negra nunca foi devidamente incorporado pela sociedade que o explorou (até serem legalmente impedidos de), basta compreender o que jaz no constante desconforto que a menor menção — sobre as consequências de séculos de doutrinação racista — provoca em pessoas que se identificam brancas. Basta observar o que se esconde na já previsível dificuldade e latente falta de empatia que muitas delas têm em lidar com as imagens de sofrimento negro que trouxeram benefícios aos seus antepassados.

[TW: Privilégios]  Tendo sido donos de escravos ou abolicionistas, imigrantes europeus pobres ou colonos desterrados, brancos nunca foram desumanizados, pois o sistema racista criado na época colocava toda e qualquer eurodescendente branco em uma situação de privilégio social, econômico, intelectual, estético e cultural em relação aos afrodescendentes – forros ou não. Por mais explorados que tenham sido os europeus e asiáticos que por aqui desembarcaram, quase nenhum deles pode dizer que veio traficado até aqui, ou que foi arbitrariamente apartado de suas origens culturais, linguísticas, espirituais e familiares, ou que nunca lhes foram, ao menos, prometido recompensação alguma. Isso sem esquecer o pequeno detalhe de jamais foram coisificados jurisdicionalmente. [/TW]

Dito isto, é curioso perceber como parece haver um consenso entre muitas pessoas brancas de que negros deveriam deixar tudo para trás, quando na verdade é impossível superar uma dor que nunca pôde ser livremente expressada — seja por ser doloroso lembrar, por analfabetismo, por censura ou por medo das consequências sociais. Por se tratar de um sofrimento que permanece sendo impedido de se debater. Embora não haja mais a ameaça de chibatadas ou outros métodos de tortura psicológica ou física, a maior exigência que ainda se faz a pessoas negras nunca deixou de ser o silêncio. Mesmo quando amarradas a um tronco, pessoas negras dificilmente eram vistas como vítimas, mas sim como eternas responsáveis pelo próprio infortúnio — #vitimização. Ao mesmo tempo em que pessoas brancas sempre desfrutam da integral capacidade de açoitar vidas pretas, assistir ao açoite ou virar o rosto.

Se hoje a dor dos judeus choca é porque — além do Holocausto ser fruto da monstruosidade do nazismo —,  os sobreviventes puderam registrar suas histórias em depoimentos oficias e não. Enquanto que a nossa (dor) gera piada porque omal-feitor dessa história é o próprio povo responsável pela barbárie. O que de fato complica a transição até que os ex-escravizados sejam aceitos plenamente como iguais — dignos dos mesmos círculos sociais —,  porque isso implicaria em aceitar os derrotados colonizados na mesma mesa que até bem pouco só podiam servir.

Pra deixar escuro, generalizo em grupos porque a partir do momento em que um continente inteiro se uniu para enriquecer as custas do sofrimento e coisificação — sem precedentes — de outro, afim de colonizar um terceiro continente, cujos habitantes foram dizimados com o mesmo propósito, é até cruel achar que as consequências e as responsabilidades disso podem ser individualizadas. Assim, da forma que pessoas negras devem se unir para remover as mordaças históricas e reivindicar oportunidades mais iguais, pessoas brancas deveriam compartilhar a responsabilidade de estarem no topo de uma hierarquia racista idealizada precisamente para privilegiá-las.

Por isso que enquanto pessoas brancas se esquivarem de qualquer responsabilidade sobre o assunto, sem deixarem de aceitar os espólios herdados coletivamente a custa dos mesmos sangue que insistem em lavar das mãos, todo o mal causado talvez jamais seja expurgado. Enquanto a maioria das pessoas brancas não entenderem que em todo pedido para esquecermos, ou falarmos sobre outra coisa há um resquício de sinhô e de sinhá, essa página não tem como virar. Enquanto a dor acumulada de pessoas negras valer menos que a possibilidade de desconforto – não de tortura – de pessoas brancas não dá pra aceitar esse papo de que somos todos iguais. Favor Não insistam mais.

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