Dos clubes sociais à militância: a história do Movimento Negro em SC

O trabalho do movimento negro resgata a participação dessa parcela da população na construção da sociedade catarinense. Porém, as primeiras militâncias antirracistas começaram muito antes dos movimentos organizados politicamente como vemos hoje.

Conforme a pedagoga Jeruse Romão, uma das fundadoras do NEN (Núcleo de Estudos Negros) em Florianópolis, as primeiras associações na luta negra contra o racismo em Santa Catarina ocorrem através dos clubes recreativos de negros. Criados para ser um espaço de socialização numa época onde eram impedidos de frequentar os clubes dos brancos, eles serviam também para o debate racial.

Em um artigo publicado na revista Africanidades Catarinenses em 2009, a educadora resgata a história dessas agremiações. “Santa Catarina chegou a ter 12 clubes de negros, alguns ainda existentes nas cidades de Laguna, Criciúma, Tubarão, Lages, Joinville, Tijucas e Florianópolis”, aponta.

Jeruse Romão, uma das fundadoras do NEN (Foto: Agência AL/Divulgação)

Segundo a educadora, o movimento negro como o conhecemos atualmente se desenha a partir de 1915, com o ativista negro Ildefonso Juvenal. O militar foi o primeiro homem negro com ensino superior no Estado e ajudou a fundar o Centro Físico e Recreativo José Boiteux, em Florianópolis. Filho de ex-escravo e de alforriada, lutou contra a discriminação racial e teve importante papel na discussão do racismo institucionalizado.

De acordo com a professora do Departamento de História da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Beatriz Gallotti Mamigonian, não é possível estabelecer uma linha de continuidade dessas associações do começo do século 20 até a formação do MNU (Movimento Negro Unificado), mas já representavam claramente uma reação ao racismo.

Primórdios da luta

Mas o primeiro movimento articulado no país, parece ter sido a Frente Negra Brasileira (1931), criada em São Paulo, e que já falava em preconceito racial estrutural no Brasil. Contudo, sua visão integralista e o apoio a Getúlio Vargas geraram uma cisão entre os participantes e dissidentes formaram a Legião Negra, que lutou contra as tropas de Getúlio na Revolução de 1932.

“No Brasil, a herança africana era tida como negativa até os anos 1930, que marcam uma inflexão, pois a partir daí a mestiçagem ganha sentido positivo e é incorporada à nacionalidade. Depois, cristaliza-se o mito da democracia racial e as lutas antirracistas precisam fazer um trabalho dobrado de denunciar o racismo, que não é evidente, e vai contra a auto-imagem do país”, afirma a Mamigonian.

Novas entidades

Quando o NEN foi criado, em 1986, em Florianópolis, uma nova fase do movimento ganhou força. “Somos de uma segunda geração de militantes. Com o NEN, criamos vários programas na área da educação, habitação, história, cultura e direito, com destaque para a formação de professores e a criação do serviço SOS racismo”, relembra Jeruse.

O núcleo articulou e organizou o movimento negro não só no Estado como no Sul do Brasil. Na década de 1990,o NEN voltou-se mais para a área acadêmica e conseguiu apoio da Fundação Ford para seu programa de educação. “Oferecemos cursos no interior catarinense, formando novas militâncias, e criamos os Cadernos do NEN, com publicações acadêmicas, e o jornal que circulou em todo o país”.

Em sua sede no Centro da Capital, o NEN manteve atuação centrada na formação de professores da rede pública e reuniu amplo acervo bibliográfico de autores negros. Também esteve à frente da implementação do ensino de história da África na rede pública de ensino, antes mesmo da Lei 10.639 que obrigou o tema a entrar nos currículos escolares.

Hoje, é presidido pela filha de Jeruse, Azânia Romão Nogueira, organizando-se em um ativismo mais virtual. “É um movimento diferente, de rede, com menor enfrentamento institucional em relação ao que fazíamos, tudo era presencial”, diz Jeruse.

MNU, o movimento nas ruas

O grupo nacional de militantes negros foi criado em 7 de julho de 1978, em São Paulo. Em Santa Catarina, foi fundado em 1993, por Juan Carlos Pinedo Zeleya (falecido em 2004), Luiz Roberto Domingues, Antonio Carlos da Silva e Valdir Cachoeira.

Vanda Pinedo na luta antirracial há quase 30 anos,é uma das pioneiras do MNU em SC (Foto: Cores de Aidê/Divulgação)

Uma das pioneiras do movimento no Estado, a gaúcha Vanda de Oliveira Gomes Pinedo, 61 anos, chegou em Florianópolis em 1994. Recém-casada com Juan Pinedo Zeleya e com forte atuação no MNU no Rio Grande do Sul, ela ingressou no núcleo catarinense e está até hoje na militância. Já foi coordenadora estadual e nacional do MNU e, após quase três décadas de atuação, recorda conquistas e avanços.

“O MNU sempre teve uma atuação junto às comunidades, lutando pela população em situação de rua, pelo serviço de transporte público em comunidades carentes e contra a violência policial. Atuamos em atos contra privatizações (Eletrosul e Comcap), em debates sobre racismo no mercado de trabalho, em defesa da libertação de Mandela, com palestras em escolas públicas envolvendo professores e alunos”, afirma Vanda.

Entretanto, ela lamenta a morosidade das mudanças necessárias. “Desde o tempo dos nossos antepassados estamos lutando por menos horas de trabalho, por dignidade, pelo direito de praticar nossa fé”, afirma.

Basta de racismo

“Dizer que vidas negras importam é muito pouco, nós estamos dizendo isso há 132 anos. E se tivemos algum avanço foi porque nunca desistimos de lutar. Já basta de racismo! Queremos políticas efetivas que promovam a mudança social necessária”, afirma Vanda.

“As políticas voltadas para a população negra – como as cotas e a luta quilombola pelo direito à terra – estão sendo desmontadas no atual governo e as nossas pautas continuam as mesmas de 1978, início do MNU. Vivemos um retrocesso de um século e isso é lamentável”, diz.

Conforme a militante, é preciso avançar em todos os aspectos: no acesso à educação, à saúde e na luta contra o genocídio praticado pela polícia contra a juventude negra. “A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Por que ninguém se levanta contra isso?”, questiona.

“De que adianta dizer que vidas negras importam, se quando é para abrir vagas para o negro na educação ou no mercado de trabalho, é quase uma guerra? A branquitude precisa mudar atitudes, rever seu lugar de privilégios, porque se os negros não avançarem, a sociedade não avança”, defende.

Fragmentação da luta

Nos tempos atuais, o cenário de resistência se diversificou e segmentou. O movimento negro passou a atuar em várias frentes – mulheres negras, juventude, saúde, educação, cultura – cada uma com sua própria metodologia.

Desse modo, movimentos estaduais e locais como NEN, MNU/SC, Unegro (União de Negros pela Igualdade, 1988), Amab (Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros, 2001) e Frejuna (Frente da Juventude Negra Anticapitalista, 2016) trabalham a partir de perspectivas distintas – classe, cultural, religiosa, político-partidária.

Porém, se unem eventualmente na defesa de pautas comuns. “Ainda é contemporânea a visão escravocrata de que os negros são todos iguais. Há várias entidades de composições ideológicas plurais, justamente porque não somos iguais”, diz Jeruse.

Representatividade importa

Enquanto no país os negros e pardos somam mais da metade da população (50,7%), em Santa Catarina chegam a 19,5%. Ainda assim, não há nenhum negro ou negra ocupando cadeiras na Assembleia Legislativa, atualmente. Essa é apenas uma, de tantas instituições nas quais não há representatividade para essa parcela da população.

Lino Peres luta pela implementação de políticas públicas voltadas à população negra de Florianópolis (Foto: Divulgação/ND)

Na Capital, o professor Lino Peres elegeu-se vereador em 2012 e está em seu segundo mandato. Mas atua na política desde a formação do NEN – do qual foi um dos fundadores, até conquistar o posto de terceiro suplente de vereador em 2004.

Segundo Peres, sua candidatura foi reflexo do trabalho nas comunidades, que acabaram o levando a postular um cargo político. “Somos minoria no Congresso Nacional e, aqui no Estado, poucos negros conseguiram ocupar uma cadeira no legislativo estadual ou municipal. Ainda estamos longe do ideal de representatividade”, analisa.

Ademais, o parlamentar critica a desproporção nos recursos do fundo eleitoral, que destina mais verba aos candidatos de partidos maiores, tornando a disputa desigual. “Lutamos pela implementação de cotas para negros em concursos públicos e pela inserção de jovens negros da periferia no programa de bolsistas da Câmara de Vereadores (o mesmo já existe na Alesc)”, diz Peres.

Embora exista uma coordenação municipal de Promoção da Igualdade Racial em Florianópolis, Peres critica a escassez de recursos. “A luta das periferias é dos pobres e negros. Falta saneamento, habitação e educação. É preciso implementar políticas de emprego e renda, programas de saúde para essa parcela da população, como o combate à anemia falciforme e à violência obstétrica”.

“Temos que pensar nos jovens que estão à margem da educação remota, porque não tem acesso à internet, e no problema do genocídio policial. Para tudo isso, é preciso verba com previsão no orçamento. Só assim é possível sair do discurso e agir”, resume.

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