É hora de enfrentar o racismo ambiental, o patriarcado e a colonialidade das decisões climáticas

23/10/25

Este artigo é o último que consigo escrever antes da COP30. O cansaço de uma conferência é imenso, especialmente para mulheres da luta popular, mulheres que lutam por direitos coletivos e não individuais — esse segundo, na verdade, acho que nem existe.

Então, vou aproveitar o mês e o tema para falar do urgente. A agenda sobre gênero e raça não é prioridade da Presidência da COP30, nem de organizações brancas brasileiras. É mais uma tarefa deixada para os movimentos negros e de mulheres, como a maior parte das lutas por políticas públicas que garantam direitos adequados.

A crise climática é também uma crise de poder. A emergência do clima acentua desigualdades históricas e recai com mais violência sobre mulheres, especialmente as afrodescendentes, indígenas, quilombolas e periféricas, cujos corpos e territórios seguem tratados como zonas de sacrifício. Diante desse cenário, o Plano de Ação de Gênero da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (GAP da UNFCCC) deveria ser um instrumento de virada — mas permanece preso a medidas simbólicas, ao voluntarismo e a uma diplomacia que evita o conflito real: aquele com o patriarcado climático e com as estruturas que o sustentam.

Plano de Ação de Gênero foi adotado em 14 de novembro de 2017, durante a COP23, em Bonn, na Alemanha, sob presidência das Ilhas Fiji. Ele nasceu para dar consequência prática a compromissos assumidos globalmente desde o Programa de Trabalho de Lima sobre Gênero, em 2014, e reafirmados no Acordo de Paris. O objetivo é garantir que a política climática mundial incorpore a igualdade de gênero em mitigação, perdas e danos, adaptação, financiamento, tecnologia e tomadas de decisão. Sua promessa fundadora era simples e poderosa: as negociações climáticas precisam deixar de ser feitas sobre as mulheres e passar a ser feitas com elas.

Em teoria, o GAP organiza um roteiro para que mulheres — em toda sua diversidade — ocupem espaços de poder e tenham seus direitos protegidos diante da crise climática. Mas, na prática, o que se observa é um plano sem meios de implementação, sem metas vinculantes e sem financiamento assegurado. Participação sem poder vira protocolo; presença sem decisão vira ornamento institucional. 

Enquanto negociadores disputam vírgulas em salas muito frias, mulheres seguem na linha de frente lidando com enchentes, secas, remoções forçadas, perda de territórios e violências que se multiplicam quando o Estado não chega — ou só chega com polícia, grilagem, garimpo ou despejo.

O clima não é neutro, e as mesas de negociação também não são. O multilateralismo ainda é majoritariamente branco, masculino e colonial. E um plano que não nomeia essas estruturas tende a reforçá-las.

Se o Plano de Ação de Gênero pretende ter impacto real, precisa deslocar o eixo: não basta “incluir” mulheres — é preciso entregar poder político, terra, orçamento, segurança e proteção. E mais: reconhecer que não há “mulher” universal quando o racismo organiza o acesso à vida, ao território, à democracia e ao próprio futuro.

Mulheres afrodescendentes, indígenas e periféricas não reivindicam apenas participação: reivindicam o direito de redesenhar o modelo econômico e energético que as viola.

Mas, justiça seja feita, em junho, durante a Conferência de Bonn, onde se iniciam as negociações antes da COP, o Estado brasileiro se colocou em defesa da inclusão da agenda racial no novo GAP. Isso representa uma conquista significativa, resultado de anos de pressão por um posicionamento explícito sobre a centralidade do enfrentamento ao racismo nas políticas climáticas. 

O desafio agora é que o Brasil assuma a responsabilidade de liderar estratégias diplomáticas concretas, capazes de sensibilizar outros países sobre a necessidade de reconhecer a população afrodescendente como grupo desproporcionalmente afetado pela crise climática.

Em um contexto global em que muitos Estados ainda ignoram — ou se recusam a enfrentar — as raízes estruturais do racismo, especialmente no plano internacional, o papel do Brasil se torna ainda mais estratégico.

Por isso, a luta não pode se limitar a gestos simbólicos: exige ação política efetiva, articulação multilateral e compromisso real com a justiça racial global.

Uma análise recente da ONU Mulheres estimou que, no pior cenário, as mudanças climáticas poderiam levar até 158 milhões de mulheres e meninas à pobreza extrema. 

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas concluiu, em 2022, que as desigualdades ligadas ao gênero agravam a vulnerabilidade e podem ser agravadas se as ações de adaptação não abordarem as dinâmicas de poder prejudiciais. O painel aponta para a necessidade de que os esforços de adaptação sejam baseados em equidade e justiça para melhores resultados.

Constrói-se transferindo poder, redistribuindo recursos e enfrentando o racismo e o patriarcado como estruturas centrais da crise. Se a UNFCCC deseja um Plano de Ação de Gênero à altura do tempo histórico, terá de romper com a neutralidade que protege privilégios.

Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver 2025 ocorrerá em Brasília (DF) em 25 de novembro, apenas quatro dias depois do encerramento da COP30. Esperamos chegar lá com esperança para mulheres afrodescendentes de todo o mundo. Queremos ter nas mãos um novo Plano de Ação, que proteja os avanços já conquistados e defina ações práticas, urgentes e com financiamento justo e adequado. E, acima de tudo, que reconheça as soluções das mulheres afrodescendentes como centrais para os direitos humanos.


Mariana Belmont – Jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental de Geledés – Instituto da Mulher Negra, faz parte do conselho da Nuestra América Verde e da Rede por Adaptação Antirracista. E organizadora do livro “Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil” (Oralituras, 2023).

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