É que a televisão me deixou burro, muito burro, demais – por Sakamoto

por Leonardo Sakamoto

Resolvi aperfeiçoar um roteiro, postado por aqui anteriormente, com coisas que andei vendo na TV nos últimos dias. Acho que agora está digno.

Cena de fazenda ocupada por indígenas. Zoom na latinha de cerveja. Câmera abre até mostrar indígenas sentados em roda, rindo de algo. Locução do repórter cobrindo as imagens:

– Eles estão festejando a invasão de trocentos mil hectares de terra. Terra que, até então, era produtiva.

Close em um deles, no que fala errado. Desfocar as crianças indígenas com cara de pobres ao fundo. Foco na falta de dentes do entrevistado. Se estiverem sujos, melhor. 

– Estamos esperando o governo nos atender, né?

Observação: Editar e jogar fora a parte do “Os pais dos pais dos meus pais costumavam viver nessa terra. Hoje, minha família vive de favor em outro terreno com outras famílias, né? Muita gente, não cabe, não dá para plantar, né?”

Passagem para o laboratório da empresa dona da fazenda. Close na lágrima do cientista3, que perdeu parte da pesquisa com a ocupação na plantação dos eucaliptos:

– Isso era a minha vida.

Subir som, resgatando versão de Milton Nascimento de “Coração de Estudante”, cantada no funeral de Tancredo Neves.

Cortar a entrevista com a liderança que fala bonito – “Na verdade, a tribo indígena pede há 30 anos que os títulos sobre a área, uma reserva já demarcada em
 1937, sejam anulados. Não estamos pedindo nova demarcação, apenas que se cumpra o que já foi decidido no passado”.

Observação: Se entrar essa declaração, a matéria sobe para o bloco de política e o diretor disse que é para ficar logo depois dos homicídios e assassinatos da madrugada, em cotidiano.

Cortar as imagens de crianças indígenas passando fome, refestelando-se com jaca velha. O chefe disse que nosso telespectador não quer ver jaca velha enquanto está jantando.

Passagem para a prefeitura do município. Prefeito:

– O medo é grande nas cidades por causa da ação dos nativos.

Repórter:

– E o prefeito denuncia.

Prefeito:

– As ONGs internacionais e o MST é que arregimentaram todo esse povo nas favelas de Salvador para levar nossas terras. Eles não são nem índios. Eles parecem índios para você?”

Entra um “povo fala”. Colocar uma idosa senhora:

– Tenho medo de vandalismo.

Um comerciante:

– Eles são contra o progresso, não querem ver geração de empregos.

Um policial:

– Normalmente, há muitas reclamações de alcoolismo com eles.

E um estudante . Encontrar o que tiver mais cara de hippie e falar para o próprio umbigo:

– Mas os indígenas têm direito a essas territórios por serem delas autóctones e nelas realizarem seus rituais e a efetivação simbólica de sua relação com o universo. Ou seja, há um princípio cosmológico presente nessa interação ser vivo e local que não pode ser negada pelo capitalismo.

Corta para o repórter na entrada da fazenda.

– A paralisação das atividades de produção de madeira na última semana fizeram o Brasil perder R$ 872 milhões em exportações.

Mostrar gráfico com dados da associação dos proprietários de fazendas ocupadas por populações tradicionais e trabalhadores rurais.

Repórter completa:

– E, entre os invasores, há procurados pela polícia, como o cacique Escambau, foragido há anos.

Volta para o estúdio, onde o apresentador faz beicinho de indignação, balançando a cabeça, antes de abrir um sorriso e chamar a matéria da preparação para a Copa do Mundo. Segue para repórter em frente ao Itaquerão:

– Estamos aqui com o coordenador do núcleo de coreografia da abertura da Copa que vai dizer como o Brasil irá receber atletas de países dos cinco continentes.

Corta para o coreógrafo:

– A pedido do governo, os indígenas serão os personagens principais. O tema será “Apogeu e Glória de Tupã-Deus-Sol, Solidariedade e Luz” e mostrará todo o esplendor dos primeiros moradores desta terra. Usaremos muitas plumas. Sintéticas, é claro! Afinal de contas, temos que ser exemplos em sustentabilidade.

Ao fundo, moças e rapazes brancos, muito brancos, mostram trechos da coreografia. Dançando, dançando, dançando…

 

 

Fonte: Blog do Sakamoto

+ sobre o tema

Anne Claire Cools

Anne Clare Cools, nascida em 12 de agosto de...

Lá vem! ‘Em Família’: Luiza briga na praia para defender Alice

" Lá vem! A sindrome de Princesa Isabel das heroínas...

para lembrar

20 coisas que deveríamos dizer mais vezes

Em meio à um mundo caótico em que para...

TCU faz auditoria nos gastos para covid-19 e aponta incoerência

Para tribunal, medidas econômicas anunciadas e discurso do governo...

Marcos Coimbra: O “povão” e a nova maneira de avaliar os candidatos

Por Marcos Coimbra, no Correio Braziliense   A...

Intelectuais discutem crise de representatividade na política

Dramaturgo inglês David Hare falou sobre distanciamento dos eleitores...
spot_imgspot_img

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...

Em 20 anos, 1 milhão de pessoas intencionalmente mortas no Brasil

O assassinato de Mãe Bernadete, com 12 tiros no rosto, não pode ser considerado um caso isolado. O colapso da segurança pública em estados...

CPMI dos Atos Golpistas: o eixo religioso

As investigações dos atentados contra a democracia brasileira envolvem, além dos criminosos que atacaram as sedes dos três Poderes, políticos, militares, empresários. Um novo...
-+=