Eduardo Cintra Torres: Azeite Gallo

por Eduardo Cintra Torres

O que choca no anúncio do Azeite Gallo no Brasil, alvo de um processo de averiguação de racismo, é ter sido possível que, em todo o processo criativo-empresarial, desde a invenção do slogan até à aprovação pela empresa, ninguém lhe tenha posto um travão.

Para publicitar o vidro escuro da garrafa como protecção do azeite, os publicitários chegaram a esta pérola: “O nosso azeite é rico. O vidro escuro é o segurança.” A imagem apresenta em desenho a sombra da garrafa transformada numa árvore; num dos galhos está um pássaro. Deste modo, a imagem significa que (por causa do vidro escuro realçado na mensagem verbal) o azeite se mantém “vivo”, como se as azeitonas ainda estivessem na árvore.

Apesar da enorme dissemelhança da árvore desenhada com uma oliveira, a ideia da imagem é adequada à mensagem. Quanto ao texto, é um absoluto desastre. Pretendeu fazer do vidro escuro a “proposta única de venda” no anúncio, o chamariz de venda permitindo distinguir a marca de toda a concorrência.

O que diz o anúncio? “O nosso azeite é rico” é uma afirmação dogmática, como quase todas no discurso publicitário; não faz sentido negá-las. Pretende a frase realmente distinguir a “riqueza” do azeite como característica do produto? Não parece. Primeiro, porque não é compreensível para os leitores do reclame o que é um azeite “rico”. Segundo, porque o adjectivo “rico” pretende fazer sentido quando lida a frase seguinte, na qual se faz a proposta única de venda: “O vidro escuro é o segurança.”

Toda a explicação das duas frases e do sentido preferencial, que os publicitários pretenderam entendida pelos brasileiros, está numa só letra: em vez de “a” segurança, o reclame escreve “o” segurança. Por meio da metáfora, ao vidro escuro é atribuída uma entidade alternativa, a “do” segurança que protege o azeite. O teor rácico da frase está na caracterização dos seguranças como indivíduos “escuros”, adjectivo comum para caracterizar pessoas não-brancas.

Deste modo, de silogismo em silogismo, concluímos que o homem preto é normalmente segurança de profissão e protege o homem rico, que, por exclusão de partes, não é preto, é branco que vai à praia e fica dourado como o azeite. As duas frases formam uma falácia retórica, pois criam uma relação consequencial entre duas ideias não relacionadas, a “riqueza” do azeite (dos brancos ricos que o consomem) e o “vidro escuro” que faz de segurança (o negro com a profissão pobre de segurança da classe média ou alta).

A mensagem tem, sem margem para dúvida, uma menção rácica, e ela não é particularmente animadora, pois assume que os seguranças são por “natureza” negros e os brancos são por “natureza” ricos. Em Portugal, a campanha de lançamento das garrafas de vidro escuro da Gallo não teve qualquer menção rácica.

A apreciação do organismo de auto-regulação brasileira da publicidade, CONAR, basear-se-á numa única queixa, o que aponta para uma grande indiferença dos observadores para a publicidade em geral e para este anúncio em particular. Mas, à margem disso, é assinalável que fosse possível aos publicitários e ao anunciante apresentar um anúncio fazendo humor com a diferença rácica entre ricos e pobres e não lhes ocorresse que o texto poderia ser ofensivo para os leitores – ou será que ocorreu? Ou será que apenas pensaram como público-alvo nos brasileiros que têm “o” tal segurança? Será que só pensaram como público-alvo nos brancos “ricos” consumidores de azeite e vivendo em condomínios com seguranças “escuros”? Será que contaram com a identificação desse público com a gracinha do anúncio? Ainda pior.

Os poetas antigos, desde Homero, cantaram o azeite como uma criação maravilhosa do homem a partir da natureza benévola. Tomara que os publicitários de hoje fizessem justiça – aos poetas e ao azeite. Mas se calhar estes nem reflectiram o quanto o azeite é um dom da civilização, da cultura, que não merece ser associado a uma grosseria.

 


Eduardo Cintra Torres – Análise e Crítica de Televisão (since 2004; in English: 2010-1); Técnicas de Comunicação Audiovisual (2010-1); Estudos de Televisão (since 2009); Ética, Comunicação e Informação (2011-2); Análise de Publicidade (since 2007).



Fonte: Jornal de Negocios

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