Eduardo Suplicy conta história do garoto trans a quem ele deu uma chance na vida

Sem nunca ter cometido delito, Anderson Herzer estava interno na Febem havia três anos. Suplicy se responsabilizou por sua soltura, ofereceu um emprego e o incentivou a escrever. A história da sua vida virou livro, peça e filme

Por Ana Ribeiro Do Ig

Duas mulheres cuidam da agenda disputadíssima do secretário dos Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, Eduardo Suplicy. Uma delas é Sandra Cristina Pereira Batalha, que está na secretaria desde 2013, início do mandato do prefeito Fernando Haddad, e trabalha com Suplicy desde que ele assumiu o cargo, em 2 de fevereiro. A outra é a transexual Noelia Presley Dias de Sousa, que nasceu no Recife, mora em São Paulo há dois anos e entrou na secretaria ao mesmo tempo que Suplicy. “Às vezes eu preciso brigar com elas para sobrar um tempinho para eu almoçar”, diz ele, que tem feito dias longos de trabalho e, segundo Noelia, não respeita sábado, domingo e feriado. “Veja, são 12 milhões de habitantes em São Paulo, a todo dia e toda hora violações aos direitos humanos estão sendo cometidas”, justifica ele.

O iGay foi visitar o escritório do secretário, no Pátio do Colégio, centro de São Paulo, e quis saber se ele já tinha trabalhado assim tão próximo de uma pessoa transgênera. Ele tinha muito mais do que isso.

O ano era 1979. Eduardo Suplicy ocupava seu primeiro cargo parlamentar, deputado estadual pelo MDB. “O PT nem existia”, lembra ele.

Em uma visita à Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, que desde 2006 se chama Fundação CASA), conheceu uma história que lhe chamou a atenção. Um garoto transexual de 17 anos estava interno na Febem desde os 14. Lia Junqueira, presidente do Movimento de Defesa do Menor, explicou para Suplicy que ele nunca tinha cometido delito algum, mas que só poderia ser solto se alguém se responsabilizasse por ele.

“O pai da menina Sandra Mara Herzer era dono de um bar no norte do Paraná e foi assassinado”, conta Suplicy. “Para manter o seu sustento, a mãe dela se prostituiu, pegou uma doença venérea e morreu. Ela foi viver com a avó, que a criou até morrer. Uma tia ficou com a sobrinha, uma garota rebelde de 12 ou 13 anos. O marido da tia tentou manter relações sexuais com ela, ela lutou com ele e foi levada para a Febem”.

“la era esperta, escrevia muito bem. Adotou uma postura de líder

O nome Bigode, que ela tinha tatuado no pulso, era homenagem a um namorado de adolescência que morreu num acidente de moto. Na Febem ela assumiu a identidade masculina, passou a se vestir como homem e adotou o nome Anderson. O apelido era bigode. “Ela era esperta, escrevia muito bem. Adotou uma postura de líder”, diz Suplicy, ainda se referindo a ela como mulher.

Ele decidiu se responsabilizar pela soltura e ofereceu um cargo em seu gabinete na Assembleia Legislativa. “Dei o suficiente para pagar a pensão e a alimentação e ela era uma espécie de estagiária que ajudava em tudo”, diz ele. “Ela se sentia como homem, se vestia como se fosse um rapaz e passou a assinar os poemas que escrevia como Anderson Herzer”.

“Eram poemas belos, mas um deles terminava de modo a sugerir que ela queria morrer. Eu disse: não faça isso, o seu livro vai sair, muita coisa ainda vai acontecer para você

Suplicy lia os poemas que ele lhe mostrava e o incentivou a escrever a história de sua vida. “Eram poemas belos, mas um deles terminava de modo a sugerir que ela queria morrer. Eu disse: não faça isso, o seu livro vai sair, muita coisa ainda vai acontecer para você.”

Anderson fez um concurso para se tornar funcionário da Assembleia Legislativa. A forma como ele se vestia foi questionada e ele ficou tenso, conta Suplicy, lembrando a justificativa usada para ele não ter ido bem no teste.

Uma manhã bem cedinho o secretário recebeu um telefonema da moça que morava com Anderson dizendo que ele havia se atirado de um viaduto da avenida 23 de Maio. No bolso ele tinha o nome e o telefone do deputado. Suplicy ainda conseguiu visitá-lo no hospital, mas ele morreu em seguida.

O título do livro sobre sua vida, lançado em 1982 pela Editora Vozes, foi o publicitário Carlito Maia quem sugeriu: “A Queda para o Alto”. “Já está na vigésima quinta edição”, diz Suplicy. “Um grupo de teatro da favela de Heliópolis montou a peça, o (diretor) Zé Celso quis que passasse no Teatro Oficina, e o espetáculo fez o circuito dos Sescs.”

Um filme baseado na história foi lançado em 1986, “Vera”, dirigido por Sérgio Toledo, e o papel principal rendeu a Ana Beatriz Nogueira o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim em 1987. O papel inspirado em Suplicy foi representado pelo ator Raul Cortez.

O secretário tinha razão: muita coisa ainda ia acontecer na vida de Anderson Herzer. Só que ele não estava mais aqui para ver.

 

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