Educação domiciliar priva estudantes de seus direitos e de uma formação cidadã

Em abril de 2019, Bolsonaro apresentou o Projeto de Lei (PL) 2401/2019, que visa regulamentar no Brasil a educação domiciliar, também conhecida como homeschooling. O tema foi retomado em meio à pandemia, quando o deputado federal Vitor Hugo (PSL/GO) apresentou um requerimento para tramitação sob regime de urgência do PL.

Para Gina Vieira, educadora de Brasília (DF), trata-se de um contrassenso: “Essa proposta vem exatamente na conjuntura em que percebemos quão complexo é garantir a aprendizagem, o quanto precisamos de professores preparados e experientes, e a falta que as escolas fazem para formação e a socialização das crianças e adolescentes”.

A especialista complementa que o PL faz parte de um projeto maior, de defesa de um Estado mínimo e de uma educação na perspectiva técnica e tecnicista. “O que está por trás desse PL é uma tentativa de impor uma educação que não discuta questões valiosas para o estado democrático social de direito, como gênero, classe e raça, tal qual propõe também o Escola Sem Partido.”.

De acordo com um levantamento da Câmara dos Deputados, até fevereiro de 2020, o PL 2401/2019 foi o mais visitado na área da “educação, cultura e esportes”. A popularidade do tema tem motivo: ele faz parte de uma das promessas de campanha de Bolsonaro, e constava como uma das prioridades dos primeiros 100 dias de governo.

“Essa aceleração tem a ver com o fato de que o atual presidente quer se reeleger e então levanta essa bandeira que estava em sua campanha. A urgência é político-eleitoral, e não algo que de fato atenda ao interesse da maioria da população em qualquer situação e muito menos durante a pandemia”, analisa Carlos Roberto Jamil Cury, professor no departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Em meio à recessão econômica do país e os cortes em investimentos em Educação, preocupa também o gasto que será necessário para implementar a estrutura dentro do sistema educacional para acompanhar os estudantes da modalidade. “É preciso ponderar quanto o Estado vai gastar para acessar a cada uma dessas famílias, se isso, de fato, vai valer a pena do ponto de vista dos ganhos para o coletivo, e se há benefícios comprovados da educação domiciliar que justifiquem isso”, argumenta Gina.

“É na escola que muitas vezes a criança vai acessar pela primeira vez questões relacionadas aos direitos humanos, aos valores republicanos”, diz Gina Vieira.

De acordo com o texto do projeto de lei, os próprios pais ou responsáveis legais pelas crianças ou adolescente serão incumbidos do processo de ensino e aprendizagem. A matrícula será feita por meio de uma plataforma virtual do Ministério da Educação, e deverá ser renovada todos os anos. Os pais também serão responsáveis por apresentar um plano pedagógico individual para os estudantes, e manter um registro periódico das atividades pedagógicas realizadas. Os alunos também serão submetidos a avaliações anuais para que a Secretaria de Educação acompanhe seu desempenho.

“Qual consonância com a LDB tem um projeto pedagógico redigido pelos pais? Isso é um desprezo pela lei e uma desvalorização dos profissionais da educação, que são pessoas qualificadas para isso, com formação inicial e permanente, que dominam o conteúdo curricular, a didática e também os processos de aprendizagem em cada fase do desenvolvimento humano”, aponta o professor Carlos.

Para Gina Vieira, o pano de fundo dessa questão é uma disputa entre concepções de Educação. De um lado, defende-se que a aprendizagem é um processo que só envolve didática, planejamento e questões de ordem técnica-burocrática: daí a possibilidade de qualquer pai, mãe ou responsável legal por uma criança ou adolescente poder ocupar a posição de ensinar.

Por outro lado, as concepções das teorias críticas e pós-críticas do currículo vão além e levam em conta também os objetivos, metodologias, a avaliação, o multiculturalismo, as interações, o desenvolvimento integral, o olhar para a identidade do sujeito e para o território, e compreendem a Educação como parte crucial para o fortalecimento da democracia e dos valores plurais. “É na escola que muitas vezes a criança vai acessar pela primeira vez questões relacionadas aos direitos humanos, aos valores republicanos”, diz Gina.

A especialista explica que isso é importante não só para aprender a conviver em sociedade e a respeitar a diversidade, mas também para uma proteção das próprias crianças e adolescentes. “Nesses debates os estudantes têm a oportunidade de compreender se estão submetidos a violações de direitos em casa. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, 76% das meninas que sofrem abuso sexual, têm como agressores alguém do contexto familiar, ou alguém próximo, como um vizinho, além de vivermos em uma sociedade que naturaliza castigos físicos. A escola é um aparelho do Estado fundamental para acessar e interromper essas violações”.

O convívio com o outro e os conflitos que surgem
O PL 2401/2019 estipula que “é dever dos pais ou dos responsáveis legais que optarem pela educação domiciliar assegurar a convivência familiar e comunitária” das crianças e adolescentes, um direito garantido pela Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas que fica fragilizado nessa modalidade.

Como cultivar uma comunidade escolar livre de bullying?
“Esse aspecto me parece o mais grave na educação doméstica por privar os filhos e as filhas desse encontro com a diferença. A escola é a única instituição que é permanente, longitudinal e sistemática, e isso significa que 48 milhões de crianças saem de casa todos os dias e ficam lá por no mínimo 4 horas ao longo de 200 dias, convivendo com os diferentes e aprendendo a respeitá-los”, diz o professor Carlos, complementando que mesmo que as famílias se comprometam a promover esse convívio comunitário, a probabilidade de escolherem ambientes e círculos sociais muito parecidos com o núcleo familiar é grande.

Para além disso, a interação com outros estudantes, com o professor, e demais colaboradores de uma escola, também faz parte das aprendizagens e do desenvolvimento integral das crianças e adolescentes. “Aprender é um processo de interação: com o conteúdo, com os outros, com a geografia da escola e o território ao redor”, explica Gina.

Dentre os principais defensores da educação domiciliar no Brasil, destacam-se dois grupos: o de vertentes evangélicas neopentecostais e o setor elitizado que deseja salvaguardar as crianças e adolescentes do que eles afirmam ser casos de violências e bullying. Em ambos os casos, o conflito surge a partir desse contato com o outro ou com opiniões e visões de mundo diferentes. “Mas os conflitos são inerentes à existência humana. Tirar a criança da escola para que ela não tenha que lidar com adversidades é empobrecer profundamente sua formação”, diz Gina.

“É preciso reafirmar a escola como o lugar para que os problemas sejam resolvidos pelo diálogo”, diz o professor Carlos Cury

É aí que entra o papel educativo das escolas e das famílias de promoverem diálogos e interações na direção da empatia e do respeito para que as crianças e adolescentes tenham seus direitos garantidos, seja o de acesso aos conhecimentos científicos e à pluralidade de ideias, ou o de ser respeitado e de poder conviver em um ambiente escolar saudável e seguro.

“O professor é detentor da formação para o conhecimento científico, mas a família deve ser chamada para conhecer os processos pedagógicos e participar das decisões em relação à interação entre a comunidade escolar. Essa chamada é uma oportunidade para estabelecer parcerias e delinear a diferença entre o papel de cada um, e que ambos devem ser respeitados. É preciso reafirmar a escola como o lugar para que os problemas sejam resolvidos pelo diálogo”, argumenta Carlos.

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