Gabriel Dantas, assessor internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra, está em Nairóbi acompanhando de perto as negociações da Convenção-Quadro da ONU sobre Cooperação Internacional em Matéria Tributária — um espaço recentemente conquistado no sistema das Nações Unidas, mas ainda marcado por um terreno normativo avesso aos direitos humanos, à justiça racial e às questões de gênero.
Mesmo diante de um ambiente árido, há vitórias que precisam ser registradas — e celebradas.
Hoje, durante uma das sessões de negociação, o Brasil fez referência direta a uma proposta apresentada por Geledés. A intervenção do subsecretário de Finanças Internacionais do Ministério da Fazenda, Antonio Cottas de Jesus Freitas — que lidera a delegação brasileira — incorporou elementos fundamentais sugeridos por nossa organização: a inclusão explícita, no artigo 9 da Convenção, de compromissos com equidade de gênero, combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas, bem como a consideração de medidas reparatórias e restaurativas.
É preciso reconhecer aqui a sensibilidade e o comprometimento do diplomata Antonio Cottas de Jesus Freitas com o campo dos direitos humanos. Sua disposição em escutar, acolher e valorizar contribuições da sociedade civil — especialmente aquelas que tratam de desigualdades estruturais profundamente enraizadas — revela um entendimento sofisticado do papel transformador que o Brasil pode exercer no sistema multilateral. Seu gesto foi técnico, político e ético. E por isso mesmo, raro.
Essa conquista é simbólica e estratégica. Em um ambiente onde tais pautas frequentemente são ignoradas ou classificadas como “extrafiscais”, ver o Brasil reconhecer a relevância dessas dimensões no âmbito de uma convenção tributária internacional é um avanço político importante — especialmente em um cenário multilateral marcado por fortes disputas geopolíticas e por tentativas recorrentes de silenciamento das vozes do Sul Global e da sociedade civil organizada.
Abaixo, compartilho o trecho final da fala do representante brasileiro:
“Por fim, ao nos prepararmos para vir a Nairóbi, recebemos propostas de atores da sociedade civil no sentido de que o Artigo 9 também faça referência ao avanço da equidade e da igualdade de gênero e ao combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e às intolerâncias correlatas — reconhecendo que desigualdades históricas e estruturais persistentes continuam a moldar os sistemas fiscais e econômicos, global e domesticamente. Há ainda um chamado para reconhecer, quando apropriado, medidas reparatórias e restaurativas. Embora não apresentemos hoje redações específicas, convidamos as delegações e a Secretaria a considerar com atenção essas contribuições.”
Esse reconhecimento público, ainda que cuidadoso, abre caminho para disputas narrativas e normativas mais profundas nos próximos ciclos de negociação. Ele também representa um gesto de escuta e de corresponsabilidade do Estado brasileiro com agendas que vêm sendo pautadas há décadas por movimentos negros, feministas, de migrantes e por organizações da sociedade civil do Sul Global.
Como observador atento dessas dinâmicas multilaterais há décadas, posso afirmar que esse tipo de formulação — um representante de Estado reconhecendo explicitamente, em uma negociação formal da ONU, que uma proposta veio da sociedade civil — é extremamente raro. Há menções genéricas à importância da sociedade civil nos discursos diplomáticos, mas atribuir a autoria de uma proposta e levá-la à mesa de negociação com esse grau de transparência e destaque é algo que praticamente não se vê no sistema ONU. Isso torna essa intervenção brasileira não apenas simbólica, mas possivelmente um precedente inovador, que pode (e deve) abrir caminho para novas práticas de coautoria política nos espaços multilaterais.
Seguimos. Em Nairóbi, em Belém, em Sevilha, em Nova York — onde quer que a justiça fiscal precise ser defendida como parte de um projeto maior de justiça social, climática e reparatória.