Por: Natasha Pitts, Jornalista da Adital
Em 25 de março de 1884, a cidade de Redenção, no estado do Ceará (Nordeste do Brasil), saiu na frente de todas as outras e, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão. Apesar disso, 128 anos ainda não foram suficientes para acabar com todo preconceito que circunda a cultura da população afrobrasileira. O tratamento dado às religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, é uma prova do quanto ainda é preciso evoluir para se superar o convencionalismo e a discriminação.
O preconceito histórico com as religiões de matriz africana anda de mãos dadas com o preconceito racial que persiste até hoje. O professor Henrique Cunha Júnior, do Núcleo de Africanidades (Nace) da Universidade Federal do Ceará (UFC) explica que o racismo relacionado a estas religiões é chamado de racismo antinegro.
“O racismo não é algo que passa simplesmente pelo preconceito, é uma forma de intolerância que prejudica a imagem, prejudica a vida, e que impede a realização de uma série de coisas”, assinala.
“Existe no imaginário popular um arquivo morto dessas religiões, consequência de uma política pública do Brasil no início da República, quando se tentou estigmatizar todas as ações culturais da população negra. Tentou-se desafricanizar o Brasil, houve uma condenação das religiões de matriz africana e isso ficou até hoje. Na República Velha, os seguidores das religiões [de matriz afro] eram presos e internados em manicômios, pois eram tidos como dementes. E isso acontecia em todos os Estados da Federação”, explica.
Este tipo de situação não foi registrado apenas no Brasil. A história conta que as religiões de matriz afro começaram a ser demonizadas, deturpadas e criticadas a partir da chegada de missionários europeus ao continente africano, que ao tomarem conhecimento do culto aos orixás – e não aos santos-; das danças e batidas dos tambores passaram a propagar que os negros adoravam o demônio.
Outra explicação complementar também seria a de que missionários se depararam com uma escultura do orixá “Exu” – montículo de terra com um pênis de barro e um par de cifres – e logo associaram ao demônio conhecido nas religiões cristãs, mesmo esta sendo uma figura inexistente para as religiões de terreiro.
A historiadora Silvia Maria Vieira explica. “O preconceito à cultura afrodescendente (as religiões de matriz africana estão nesse hall) se construiu a partir da ideia de que tudo que estava fora do padrão eurodescendente não se configurava como algo importante, científico e valorizável. As religiões ocidentais têm como fundamento o dualismo, a ideia de que o bem deve vencer o mal. Dentro das religiões de matriz africana o bem e o mal devem estar em equilíbrio, afinal todos temos o bem e mal dentro de nós. Por que um deve ser anulado em função do outro?”, questiona.
A partir da falsa afirmação de culto ao demônio, toma-se como verdade a ideia de que as religiões de matriz africana são usadas exclusivamente para se praticar o mal. Esse pensamento segue no imaginário popular até hoje e por este motivo, entre outros, ‘macumbeiro’ se tornou um xingamento.
Em Fortaleza, capital cearense, a situação não é muito diferente. O Candomblé chegou aqui por volta da década de 1950 e ganhou notoriedade com a apresentação do espetáculo “Uma noite na Bahia”, estrelado no Teatro José de Alencar em 7 de fevereiro de 1955, pelo capoeirista Mestre Bimba e seus alunos.
Depois deste contato com a cultura africana o Candomblé começou a se popularizar na cidade, mas como era de se imaginar, seu exercício na “Terra da Luz” foi cercado de discriminação. Para que as primeiras casas começassem a funcionar foi preciso ajuda de pais, mães e filhos de Santo do Estado da Bahia, onde a religião era praticada e conhecida há mais tempo.
Ainda hoje, mesmo com a presença de 5 mil terreiros em Fortaleza e região metropolitana e uma média de 14 mil no estado cearense – segundo dados da União Espírita Cearense de Umbanda – a população do Estado tem dificuldades em aceitar as religiões de matriz africana, a presença de pais e mães de Santo com suas vestimentas características e o batuque dos tambores nos terreiros.
O pesquisador de folguedos populares e da cultura Afro-brasileira no Ceará, iniciado no Candomblé e presidente da Associação Afro Brasileira de Cultura ALÀGBA, Leno Farias, testemunha que por conta da discriminação com as religiões de matriz africana não é difícil a polícia entrar em terreiros para apreender os instrumentos justificando estar cumprindo a Lei do Silêncio.
“O terreiro, passou das 10h [da noite], se ele tiver tocando tambor, a polícia vai lá e fecha, mas a igreja de Fátima pode fechar a [Avenida] 13 de maio e fazer culto e atrapalhar a vida de todo mundo até a hora que eles quiserem. A igreja evangélica, na periferia, pode deixar sua banda – com bateria, guitarra – tocar até a hora que eles quiserem, até uma hora da manhã, e nada acontece”, revela.
Quando fala sobre a igreja de Fátima, o pesquisador faz referência à caminhada e à missa campal que acontecem todo dia 13 de maio para relembrar a última aparição de Nossa Senhora de Fátima.
Leno conta que o preconceito chega a prejudicar a vida pessoal dos frequentadores dos terreiros. Ele mesmo chegou a ser demitido quando seu empregador, um padre da Igreja Católica, tomou conhecimento de que seu funcionário era do Candomblé.
O pai de Santo e historiador Valdo de Iansã também assumiu já ter passado por situações em que foi discriminado por ser seguidor de uma religião de matriz afro.
“Já passei constrangimentos como, por exemplo, recebi convites para ser padrinho de uma pessoa na igreja, mas quando descobriram que eu era de terreiro não deixaram. Na escola aqui no bairro onde eu sou professor, sou conhecido como professor Lopes, os alunos me abordaram perguntando se eu morava ‘naquela casa’, na casa do macumbeiro Valdo. Eu disse que estavam falando com ele e os alunos se admiraram por eu ser macumbeiro, como eles dizem, e também professor. Eles imaginavam que quem era seguidor das religiões de terreiro não tinha cultura. As pessoas sabem de tudo, menos o que a religião realmente é e faz”, relata.
O professor Henrique Cunha revela que as crianças que frequentam o terreiro também sofrem com o olhar torto e o desrespeito de quem não conhece as religiões de matriz africana. “As crianças enfrentam uma barreira muito séria na escola. Alguns quando chegam de cabeça raspada [uma das etapas da iniciação ao Candomblé, que significa renascimento] preferem dizer que tiveram leucemia do que assumir que são do candomblé. No Maranhão, uma criança chegou a levar uma surra de Bíblia de evangélicos. E em Fortaleza há os mesmos problemas”, conta.
Mais adeptos
Apesar de todo preconceito, o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que cresceu o número de adeptos das religiões de terreiro. O censo de 2000 registrou que até este ano existiam no Brasil 127.582 seguidores do candomblé e 397.431 adeptos da Umbanda, religião genuinamente brasileira nascida no Rio de Janeiro, na década de 20, mas que carrega fortes características das religiões de matriz africana. Já a última pesquisa, a de 2010, revelou que em todo o Brasil 167.363 pessoas afirmam ser adeptas do Candomblé e 407.331 da Umbanda. O censo trás ainda a informação de que 14.103 pessoas se declararam de outras religiosidades afro-brasileiras.
Pai Valdo de Iansã acredita que a quantidade de seguidores destas religiões seja muito maior. “Estas pessoas que aparecem na pesquisa são apenas as que tiveram coragem de assumir sua religião, mas muitas mais frequentam os terreiros e quando saem do portão para fora elas dizem que são católicas ou evangélicas, justamente pelo preconceito”, assegura.
Respeito
Mesmo com todas as manifestações de discriminação, desrespeito e intolerância, o pai de Santo acredita que hoje as pessoas estão com a mente mais aberta. “Antes sentia que o preconceito era maior, até os terreiros recuavam”, opina.
Mas Leno Farias quer ainda mais. Ele assegura que o povo de Santo e os demais seguidores das religiões de matriz africana não desejam apenas ser tolerados. “A mim não interessa ser tolerado, o povo de terreiro não quer tolerância, o que nós queremos é respeito. Se não for possível, não queremos mais nada”, assegura.
Para o professor Henrique, conhecer antes é uma das atitudes que pode ajudar a acabar com a discriminação. “Entender o que essas religiões fazem ajuda a combater o preconceito e inclusive ajuda as religiões a cumprirem suas missões”.
A historiadora Silvia Maria também defende a valorização das religiões. “Acima de tudo as religiões de matriz africana devem ser valorizadas e reconhecidas como parte da nossa cultura. Temos muito que aprender com essas religiões que valorizam a natureza, a comunidade, os ancestrais, a cooperação e acima de tudo o ser humano”.
Silvia também acredita que um bom passo é conhecer a influência destas religiões na cultura e formação social brasileira. “Temos muito da cultura africana, porém não sabemos que muito do que fazemos e valorizamos tem essa matriz. Pedir a benção aos mais velhos é típico da cultura africana/afrodesdendente, a configuração de uma família estendida onde as pessoas se preocupam e ajudam uns aos outros, dividindo tudo e inclusive a comida é outra prática, a musicalidade, a valorização da natureza e sua manipulação com o uso das ervas, a nossa malemolência”, acrescenta.
Redenção?
O estado do Ceará se vangloria de ter sido a primeira província brasileira a abolir a escravidão no Brasil, a ponto de ser conhecido como Terra da Luz. O feito aconteceu na cidade de Redenção em 25 de março de 1884 – quatro anos antes, então, do 13 de Maio, marcado pela assinatura da Lei Áurea, em 1888. A abolição, no entanto, se deu num contexto onde a presença do povo negro não era, sob o ponto de vista comercial, interessante para os fazendeiros e demais castas ricas cearenses, uma vez que não se teve fortemente a cultura de cana-de-açúcar ou do café, comum em outros estados como Bahia e Rio de Janeiro, por exemplo.
“Negros no Ceará – Redenção?” é uma série de matérias elaboradas por ADITALque busca retratar e questionar a história atual do povo negro no Ceará. Quais são suas lutas, como se identificam neste processo ainda bem marcado pelas nuanças brancas, o que tem a dizer sobre o orgulho de ser negro, o que acham das políticas afirmativas, o que pensam do preconceito. Essas são algumas das diretrizes que procuram evidenciar esta cultura rica que, embora invisibilizada, pulsa forte como uma batida do maracatu e que cada vez mais conquista seu espaço através de muita luta, que reverbera em seus tambores o ritmo da justiça e o anseio de peitar uma dívida histórica social.
Fonte: Africas