Em carta, Wächter afirma que nazistas entravam no Brasil sem passaporte

Comandante da SS explica a colega nazista como fugir para a América do Sul e diz que, para o Brasil, uma carteira de identidade era suficiente

 

A carta redigida à máquina, com data de 10 de maio de 1949, é um dos tesouros históricos do sótão do Castelo Hagenberg, na Áustria, sob a guarda de Horst Wächter. O documento de duas páginas, preservado com delicadeza, apresenta detalhes sobre a famosa “Linha dos Ratos”, rota de fuga nazista acobertada pelo bispo Alois Hudal, que levou ex-oficiais de Adolf Hitler à América do Sul.

A carta, segundo Horst, foi escrita por seu pai, Otto Wächter, comandante da SS e ex-governador da Cracóvia e Galícia. O documento está endereçado a um certo Ladurner, amigo do nazista que vivia em Bolzano, na Itália, mas nunca foi enviado. Wächter morreria um mês depois de redigi-la. Os principais assuntos da missiva são estadias em Roma e rotas de fuga para Brasil e Argentina.A veracidade do documento foi confirmada por especialistas ouvidos por Opera Mundi. Tanto Daniel Stahl, autor de “Nazi Hunt: South America’s Dictatorships and the Avenging of  Nazi Crimes”, como Gerald Steinacher , que escreveu “Nazis on the Run – How Hitler’s Henchman Fled Justice”, avaliam que a carta traz informações importantes sobre a rota de fuga dos nazistas para a América do Sul.”A rede de pessoas que possibilitaram a fuga foi muito ampla e, com certeza, agora podemos dizer que Wächter está entre elas, o que era desconhecido até hoje”, afirma Stahl.

Os papéis foram recolhidos pela mulher do oficial, Charlotte Bleckmann, anos depois de sua morte na capital italiana. Otto Wächter, que se escondia sob o nome falso Alfredo Reinhardt, teria sucumbido a uma icterícia após nadar nos canais da cidade, mas não há registros do óbito além de notícias de jornais italianos e austríacos da época.A edição de 9 de setembro de 1949 do jornal Weltpresse confirma a morte de Wächter e pergunta, em sua manchete, sobre o paradeiro de seu arquivo, que foi destruído. A carta, segundo Horst, foi uma das centenas de documentos guardados por sua mãe. Nenhum deles fala sobre o Holocausto nos territórios governados pelo comandante da SS.


1949 05 10 an Papa Ladurner1

A carta

Caro Ladurner!

Eis que volto agora da cidade completamente acabado. Durante o dia a temperatura chega a graus consideravelmente mais quentes. Mas as noites esfriam maravilhosamente. Eu agora entendo porque todos os homens aqui vestem camiseta regata por baixo da camisa. Resfria-se muito facilmente com a mudança de tempo, razão pela qual o guia Baedecker e a experiência de Deterling acham aqui muito pior que no Norte.Leia aqui o restante da carta de Wächter


Documentos necessários

Otto Wächter mantinha laços próximos com o bispo Alois Hudal e orientou na carta seu colega, Ladurner, sobre os métodos para buscar refúgio na América do Sul. O comandante da SS conseguira angariar diversas informações sobre uso de passaportes da Cruz Vermelha para fugir, exigências de oficiais de fronteira de Brasil e Argentina e vistos.

“Segundo Hu. [possivelmente o bispo Alois Hudal], passaportes da Cruz Vermelha não serão mais expedidos após o fim de maio. Essa função será então transferida para um departamento do Vaticano. Ele acredita que o documento emitido pelo Vaticano poderá ter menos valor que os atuais (que por sua vez já possuem reconhecimento bastante limitado)”, escreve o comandante da SS.

É notório que a Cruz Vermelha, no episódio mais vexatório de sua história, entregou passaportes a oficiais nazistas, entre eles Adolf Eichmann, Josef Mengele e Klaus Barbie, que fugiram – pelo menos momentaneamente – para o anonimato. Segundo pesquisa conduzida por Gerald Steinacher, da Universidade Harvard, pelo menos 120 mil discípulos de Hitler se beneficiaram dos papéis. A organização se desculpou publicamente pelo ocorrido.

Já o Vaticano, que também teve sua parcela de cumplicidade com fugitivos nazistas, nunca comentou as acusações de emitir, através de uma comissão de refugiados, identidades falsas – são elas que, muito provavelmente, Wächter cita na carta com “reconhecimento bastante limitado”.

 

Entrada no Brasil

Wächter esclarece a Ladurner que entrar na Argentina acarreta “conhecidas dificuldades” e afirma que “candidatos” foram até o Brasil “para mudar de profissão”. “Você deverá fazer o mesmo quando estiver do outro lado, para aumentar suas chances de sucesso”, escreve o comandante da SS, para então listar as exigências do consulado brasileiro.

Governo da Polônia
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São elas: passaporte da Cruz Vermelha, desde que acompanhada de documento anterior à guerra, certidão de nascimento, certidão de casamento, carteira profissional e declaração de que não era comunista. Em seguida, o nazista acrescenta que “os brasileiros na verdade não reconhecem os passaportes da Cruz Vermelha, mas se contentariam com um passaporte austríaco ou I.Karte [carteira de identidade]”.[Foto de Otto Wächter durante seu período na Polônia]

“Além disso, é possível falar de maneira bem aberta com eles, sem que as autoridades austríacas tomem conhecimento”, afirma Otto Wächter, dando mostras de uma receptividade maior por parte dos brasileiros.

Estadia e alimentação

“Quanto a uma eventual permanência aqui [sob o zelo da Igreja Católica em Roma], seria possível lhe arranjar almoço e jantar de graça no refeitório papal, em princípio por uma semana (renovável)”, recomenda Wächter ao amigo Ladurner. “É meio primitivo, assim como a companhia, mas é o que há”, completa.

O comandante da SS tinha na manga todos os custos necessários para permanecer às escondidas com ajuda do bispo Alois Hudal e sobre o eventual financiamento de uma organização que poderia ajudá-los a fugir, que só aceitava protestantes. Ao final da carta, Wächter reafirma que a oferta principal é para ir para o Brasil.

“Se você tem interesse nas coisas daqui discutidas e ainda consegue encarar todos os obstáculos e cumprir todos os requisitos, aí sim as suas despesas e o seu tempo estarão mais que justificados. No caso de você não querer ir ao Brasil, e essa oferta vale só para lá, você poderá economizar seu dinheiro e deixar a manivela girando aqui comigo”, escreveu ele.

 

 

 

Fonte: Opera Mundi

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