Em paralelo à CSW, organizações promovem debate sobre como avançar nas políticas de raça e gênero no mundo

Geledés na ONU, incidencia internacional de Geledés Instituto da Mulher Negra
Enviado por / FontePor Kátia Mello

Encontro em NY, organizado por Geledés e a ONG Akina Mama wa Afrika, objetivou impulsionar decisões que afetam os direitos das mulheres afrodescendentes

Em paralelo à 69ª Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW69), Geledés-Instituto da Mulher Negra e a ONG Akina Mama wa Afrika (AMwA) promoveram conjuntamente nesta sexta-feira, 14, o encontro “Justiça de Gênero e Racial no Contexto da Recessão Democrática”, em Nova York. Participaram do evento a embaixadora Vanessa Dolce Faria, a coordenadora-geral da Rede de Mulheres Afrolatino americanas, Afrocaribenhas e da Diáspora, Paola Yáñez e a diretora-executiva da ONG Gender at Work, Madeleine Kennedy McFoy. Da parte de Geledés, estiveram também presentes Nilza Iraci, coordenadora de Formação, Cuidado e Emancipação e a assessora internacional Letícia Leobet. A moderação ficou a cargo da assessora internacional de Geledés, Carolina Almeida, e da representante da AMwA, Sarah Nannyondo Okello.

Criada em 1946 pela Organização das Nações Unidas (ONU), nesta edição a CSW teve como tema “Acelerando o Progresso para a Igualdade de Gênero: Inovação, Resiliência e Liderança”. O fórum, que acontece em Nova York entre os dias 10 e 21 de março, é crucial para monitorar e impulsionar decisões políticas de gênero e raça, nos campos econômico, social, ambiental e humanitário.

Neste ano de 2025, a CSW celebra o 30º aniversário da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, um documento histórico para o alcance destas políticas. Embora tenha havido um progresso significativo, o cenário global está cada vez mais volátil, com desafios persistentes e emergentes, ameaçando esses ganhos duramente conquistados nestas últimas décadas. O crescente autoritarismo, os movimentos antigênero, as crises climáticas, o aprofundamento das desigualdades econômicas e a erosão das instituições democráticas criaram um ambiente hostil para os direitos das mulheres, a participação política e a liderança.

Na abertura do evento, Carolina Almeida fez um resgate do conceito de democracia, diante das atuais ameaças da extrema direita ao redor do mundo, destacando que os impactos maiores recaem nos afrodescendentes. “Embora esses desafios afetem o mundo em geral, eles impactam desproporcionalmente o Sul Global, onde desigualdades históricas e estruturais, sistemas patriarcais racializados e dinâmicas de poder racializadas continuam a obstruir a liderança significativa das mulheres na governança. Apesar dessas barreiras, este momento também apresenta uma oportunidade para a colaboração Sul-Sul para reimaginar a liderança, fortalecer a governança democrática e construir um futuro justo e equitativo”, disse ela.

Após fornecer uma série de dados sobre a condição das mulheres negras no Brasil, como o fato, por exemplo, de que elas recebem em média 44% a menos que os homens brancos, Carolina trouxe sua análise. Para ela, os números representam “o reflexo de um projeto político e econômico que há séculos destina às mulheres negras uma posição subalternizada na sociedade brasileira”.

Esse panorama, como bem pontuou a assessora internacional de Geledés, se agrava no atual contexto de recessão democrática global. “Esse movimento político autoritário utiliza discursos baseados no racismo, sexismo e xenofobia para ampliar sua base social, minando não apenas os espaços cívicos, mas também atacando frontalmente os direitos das mulheres — especialmente das mulheres racializadas, como as mulheres negras, as indígenas, mulheres LBT, mulheres com deficiência — e tentando e infelizmente, conseguindo, reverter conquistas históricas, um exemplo claro do que estamos testemunhando e enfrentando neste processo da CSW69”, afirmou ela.

A embaixadora Vanessa Dolce Faria foi na mesma direção da fala de Carolina ao descrever o que chamou de “cenário de ameaças diretas a todas nossas conquistas”. “Muitos países e grupos extremistas estão se fortalecendo e se conectando globalmente, espalhando desinformação, negando a igualdade de gênero, atacando políticas essenciais para a promoção da equidade, diversidade e acessibilidade. Esses grupos fazem uso de plataformas digitais que tiram a legitimidade das instituições democráticas, espalham discursos de ódio, sobretudo desacreditam lideranças femininas. O Brasil como outros países vem sentindo os impactos desses fenômenos”, disse ela. Como solução, a diplomata indicou que só é possível se fazer um enfrentamento a esse quadro crítico “com ações coletivas, com coordenação política e sociedade civil brasileira e internacional”.

Ainda neste contexto de avanço global da extrema direta, a embaixadora elogiou a pressão da sociedade civil por mudanças. “Tenho orgulho em dizer quão preparada está a sociedade civil brasileira e a gente precisa desse preparo na defesa da democracia”. A diplomata mencionou as dificuldades de diálogo nos diferentes espaços, inclusive nas negociações políticas nesta CSW. “Tivemos muitas disputas entre os países. Muitas dificuldades em seguir com linguagens que sempre foram acordadas. Em um certo sentido, a gente ter tido uma declaração política é uma vitória, porque foi possível uma unidade. Mas não foi fácil.”

A embaixadora ainda chamou atenção para a CSW considerar a brecha digital como “um aspecto central da declaração” da conferência, ao se referir ao comprometimento dos Estados membros em reduzir a lacuna digital de gênero e garantir a plena participação das mulheres no desenvolvimento e conhecimento tecnológico.

Ao resgatar o contexto do aniversário da Declaração de Pequim, a coordenadora-geral da Rede de Mulheres Afrolatino americanas, Afrocaribenhas e da Diáspora, Paola Yáñez, afirmou que foi na América Latina que a agenda regional de gênero e raça obteve maiores avanços. Como as outras painelistas, Paola sinalizou um contexto de diálogo político em que predominam o medo e a desesperança. Porém fez uma ressalva. “Quero lembrar as mulheres negras que, para nós, a crise não é algo novo. Nós vivemos em crise constante, e não só de financiamento. E a violência, para nós, não é algo novo”, disse ela.

“A diferença é que agora, comparando-se aos anos 90, é que, naquele tempo, como estávamos saindo de ditaduras e havia essa coisa de os governos quererem mostrar uma vocação de direitos humanos, precisando se limpar da imagem da ditadura. Agora eles são abertamente contra os direitos, abertamente conservadores, porque já não lhes interessa limpar seu passado, já não precisam de uma máscara. E isso está nos levando a um cenário complicado, que é o desmantelamento do multilateralismo”, disse Paola.

Paola também alertou para o perigo de se debilitar espaços significativos dentro das Nações Unidas como a CSW. “Estão retirando o financiamento, estão asfixiando estes espaços para que nós não estejamos aqui. E aqui entramos nesta contradição que muitas vezes acontece com o movimento de mulheres ao dizerem que temos que sair daqui. Mas não vamos sair”, disse ela.

Ao também fazer um balanço sobre Pequim, a diretora-executiva da ONG Gender at Work, Madeleine Kennedy McFoy, centrou-se na discussão sobre o financiamento das organizações de defesa dos direitos humanos da sociedade civil, hoje ameaçadas por drásticos cortes de financiamentos por governos de extrema direita, como é o caso atual dos Estados Unidos.

“A quem estamos servindo? Às nossas organizações ou aos nossos movimentos? Vocês estão se fazendo essa pergunta? Acho que essa é uma pergunta que a sociedade civil tem que responder. Há 30 anos que falamos sobre isso, sobre a dependência de muitas das nossas organizações em relação a organizações como a USAID”, disse ela ao se referir ao desmantelamento pelo governo Trump da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID), que financia uma série de instituições de direitos humanos ao redor do mundo.

Para além da questão das fontes de recursos financeiros, a assessora internacional de Geledés, Letícia Leobet, sublinhou a relevância de se fazer articulações políticas como uma medida de enfrentamento aos retrocessos globais. “Mulheres afrodescendentes do Brasil, precisamos nos articular mais na dimensão da América Latina, precisamos nos articular mais com as mulheres africanas e fazer com que essa perspectiva do Sul global consiga alcançar e disputar a governança global de uma maneira mais consistente. Eu acho que esse é um grande desafio e que a gente precisa pensar sobre essas pactuações, pensar sobre essas articulações”, disse ela.

Como contribuição importante ao debate, nas conclusões finais do encontro, foi lembrado que este é o Ano da União Africana para a Justiça Reparatória, para africanos e afrodescendentes, e que mesmo que haja diferenças entre esses grupos, a partir dos territórios e das especificidades de cada um deles, essa é uma luta conjunta que deve ser fortalecida politicamente.

Leia a fala de Carolina Almeida na integra

Evento Justiça de Gênero e Racial no Contexto da Recessão Democrática/ Foto Iradj Eghrari

Boa tarde a todas as pessoas aqui presentes e as que nos assistem online, sejam muito bem vindas. É um prazer estar aqui novamente na cia de pessoas amigas e parceiras nessa caminhada pela justiça de gênero e de raça.  Meu nome é Carolina Almeida, eu sou assessora internacional de Geledés para os temas de gênero e imigração. Gostaria de agradecer o apoio da equipe de Geledés aqui presente e também parte da equipe que está nos auxiliando no Brasil em nome da nossa diretora Nilza Iraci. Agradeço nossas parceiras da Akina Mama wa Afrika que estão organizando este evento conosco, Sarah e Chimwemwe. E agradeço a presença de nossas estimadas panelistas: A representente de Alto nivel para assuntos de gênero do Ministerio das relações exteriores, a embaixadora Vanessa Dolce Faria, Paola Yanez (coordenadora geral da rede de Mulheres Afrolatino americanas e Afrocaribenhas e da Diáspora) e Madeleine Kennedy McFoy (Gender at Work executive director).

Gostaria de abrir esta sessão fazendo uma breve reflexão acerca do que entendemos uma democracia. O que é, afinal, a democracia? Para além de uma forma de governo que herdamos dos gregos clássicos e que se transmutou ao longo do tempo até se adequar ao modelo do Estado nação, não é a democracia é um projeto político filosófico que parte do princípio de que todas as pessoas são dotadas de igual valor e dignidade? Podemos entender, portanto, que a democracia um compromisso ético-político-legal com a igualdade substancial, que exige que os mecanismos de poder e de decisão garantam não apenas a participação formal por meio do processo eleitoral de escolha de representantes, mas também a distribuição justa dos recursos, das oportunidades e do bem-estar social.

A Organização das Nações Unidas (ONU) define a democracia como um ideal baseado em valores universais que garantem a participação plena e equitativa da pessoa humana na condução de seus próprios destinos. Segundo a ONU, a democracia só se consolida quando há liberdade de expressão, igualdade perante a lei e acesso irrestrito aos direitos fundamentais. No entanto, essa perspectiva normativa encontra profundas barreiras quando analisamos a realidade social de determinados grupos. Aqui, surge uma pergunta essencial: quem é essa “pessoa universal” que usufrui desses valores universais propostos pela ONU? As mulheres negras são reconhecidas como essa “pessoa universal”? Pela minha experiência e das mulheres negras que me precederam, essa figura universal tem sido, historicamente, homem, branco, cis e pertencente às elites econômicas e sociais. Essa universalidade aparente e estrategicamente posicionada, portanto, mascara desigualdades e perpetua a exclusão de mulheres negras do pleno gozo dos direitos e das garantias democráticas.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, estabelece que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, cujo fundamento é, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. No entanto, essa mesma Constituição convive com uma sociedade que marginaliza historicamente a população negra, especialmente as mulheres negras. O artigo 5º, que assegura a igualdade de todos perante a lei, esbarra na prática em desigualdades concretas que negam esse direito básico a mulheres negras no Brasil.

Se entendermos então a democracia como um sistema político que garante a participação cidadã e o pleno acesso aos direitos sociais, políticos e econômicos para toda a população, então precisamos questionar se esse ideal se concretiza de forma equitativa para todas as pessoas. Ao observar a realidade das mulheres negras no Brasil, percebemos que essa promessa democrática está longe de ser cumprida e talvez, nunca tenha sido.

Porque se democracia efetiva se manifesta no acesso a direitos básicos: saúde, segurança, educação, cultura, lazer, moradia digna e trabalho decente, então para as mulheres negras, o acesso a esses direitos básicos tem sido historicamente limitado — e em muitos casos, inexistente. Dados recentes evidenciam essa desigualdade estrutural.

De acordo com o IBGE – que é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres negras são as principais vítimas da violência letal no Brasil. Entre 2017 e 2021, os homicídios de mulheres negras cresceram 5,8%, enquanto os homicídios de mulheres não negras caíram 33,3%. Esse dado revela como o direito básico à segurança é sistematicamente negado a essa parcela da população.

No campo da saúde, a mortalidade materna entre mulheres negras é 77% maior do que entre mulheres brancas, segundo dados do Ministério da Saúde. Essa disparidade reflete não apenas o racismo institucional presente nos serviços de saúde, mas também a ausência de políticas públicas que considerem as especificidades de nossa existência.

Na educação, embora tenham maior participação no ensino superior em comparação com homens negros, as mulheres negras enfrentam maiores taxas de evasão e menores oportunidades no mercado de trabalho. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) do Brasil apontam que, mesmo com qualificação equivalente, as mulheres negras recebem, em média, 44% a menos que homens brancos.

No mercado de trabalho, nós mulheres estamos sobrerepresentadas nas ocupações mais precarizadas. São elas que predominam entre as trabalhadoras domésticas, uma profissão historicamente marcada pela informalidade e pela ausência de garantias trabalhistas. O IPEA aponta que cerca de 63% das trabalhadoras domésticas no Brasil são mulheres negras.

Estou apresentando esses números, mas não quero apresentar apenas as estatísticas, que afirmar que eles são o reflexo de um projeto político e econômico que há séculos destina às mulheres negras uma posição subalternizada na sociedade brasileira. Um projeto que revela e reflete uma democracia incompleta, excludente e seletiva, que naturaliza a violação sistemática dos direitos das mulheres afrodescendentes.

Essa lacuna democrática se aprofunda ainda mais quando analisamos o atual contexto de recessão democrática que se expande globalmente. Esse movimento político autoritário utiliza discursos baseados no racismo, sexismo e xenofobia para ampliar sua base social, minando não apenas os espaços cívicos, mas também atacando frontalmente os direitos das mulheres — especialmente das mulheres racializadas, como as mulheres negras, as indígenas, mulheres LBT, mulheres com deficiência — e tentando e infelizmente, conseguindo, reverter conquistas históricas, um exemplo claro do que estamos testemunhando e enfrentando neste processo da CSW69.

Esse cenário tem imposto desafios ainda maiores à conquista da justiça racial e de gênero, aumentando significativamente a distância que ainda precisamos percorrer para que a democracia efetivamente contemple as mulheres negras como sujeitas de direito. Se, no passado, essa promessa já parecia inalcançável em médio prazo, hoje, sob essa onda extremista e autoritária, a urgência de uma resposta coordenada e coletiva é ainda maior. O enfrentamento a esse cenário exige estratégias transnacionais que garantam que as vozes das mulheres afrodescendentes não sejam apenas ouvidas, mas que ocupem, juntamente com os outros grupos, o centro do debate democrático e da construção de alternativas políticas inclusivas e equitativas.

É pensando nesse fortalecimento por meio da cooperação transnacional que propomos este evento, com o intuito de buscar soluções conjuntas com nossas parceiras do Akina Mama wa Afrika, com a embaixadora Vanessa Dolce Faria, com a diretora geral da Rede Afrolatinoamericana e Caribenha, Paola Yanez, e com Madeleine Kennedy McFoy. Elas são as painelistas que trarão perspectivas fundamentais para iniciarmos a plenária, que será moderada pela Sarah, da Akina Mama wa Afrika.

Obrigada.

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