Por Fernanda Pompeu
Alguns amigos e muitos conhecidos me perguntam se eu tenho um lugar preferido para escrever. Eles querem saber se escrevo na sala, no quarto, ou até na cozinha. Penso que para escrever só é imprescindível ter uma base. Seja mesa, prancheta, pernas. Isso para escritores em situações corriqueiras.
O prosador Graciliano Ramos precisou de apenas um lápis (talvez de três) para começar, no presídio, o seu Memórias do Cárcere. Por sinal, quem o mandou prender foi Getúlio Vargas – aquele presidente que se matou há exatos sessenta anos. O americano Ernest Hemingway – autor de delícias como O Velho e o Mar (se você ainda não leu, sugiro que o faça, pois é bom demais) – parece que curtira escrever em pé.
Assim como Clarice Lispector – romancista, contista e cronista de primeira qualidade – punha a máquina de escrever no colo e teclava palavras incendiárias de pura literatura. Já o autor do Auto da Compadecida, mestre Ariano Suassuna, gostava mesmo de escrever deitado na cama ou na rede. Sem falar em escritores que apreciam trabalhar no banheiro, ou em mesinhas de botecos, ou debaixo de mangueiras.
Respondendo à pergunta do primeiro parágrafo, eu, uma escriba modesta e sem nenhuma obra para citar, além de textos frugais em meios mais voláteis ainda, respondo que meu lugar dos sonhos para escrever é Veneza, norte da Itália. Uma cidade sitiada pela água é exata metáfora da aventura da escrita.
A primeira coisa a fazer ao chegar em Veneza é jogar fora mapas de localização. São inúteis. O melhor de tudo é errar por suas pontes, ruelas e becos que sempre dão nas águas. Inebriar-se da mais-do-que-feliz junção de natureza e arquitetura. Admirar as construções incrustadas de histórias e os canais trazendo a lembrança dos igarapés da Amazônia, só que urbanizados.
Para escrever, também é necessário jogar fora mapas e esquemas. Livrar-se de qualquer coisa que recorde um caderno contábil ou manual de eletrodoméstico. É recomendável deixar o espírito aberto e disposto a tropeçar nos caminhos. Também deixá-lo corajoso para se levantar e seguir até a próxima vírgula.
Repenso. Veneza não precisa estar em Veneza. Ela pode ser o Pelourinho em Salvador, Santa Tereza no Rio de Janeiro, Icaraí em Niterói, Vila Madalena ou Sapopemba em Sampa. Afinal, o que conta é a vontade e o trabalho de surpreender o outro com o cinema das palavras.
Imagem: Régine Ferrandis, de Veneza.
Fonte: Yahoo