O mês da Consciência Negra termina com um fato histórico: a Articulação de Resgate e Reforço da Agenda de Durban, formada pelas ONGs Geledés -Instituto da Mulher Negra, Criola, Comunidade Bahá’í do Brasil, Coalizão Negra por Direitos e Instituto Raça e Igualdade, conseguiu chamar a atenção do mundo para a urgência do cumprimento pelo Estado brasileiro da Agenda de Durban que há 20 anos estabeleceu como objetivo claro erradicar o racismo no Brasil assim como o extermínio da população negra.
Foi muito importante para Geledés e para as outras organizações da Articulação o fato de que o documento, chamado de relatório sombra e entregue ao CERD dias antes das audiências, tenha servido como base preliminar para a sabatina feita ao governo brasileiro durante a 108ª sessão do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), realizada entre os dias 16 e 17 de novembro, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça.
A sabatina aconteceu justamente em um momento bastante crítico em que se acelera a espiral da opressão racial e se tornam ainda mais transparentes os diversos tipos de violências contra a população negra. (Basta ver o edital recém-anunciado pela Prefeitura de São Paulo para contratar um sistema de monitoramento via câmeras a fim de identificar pessoas suspeitas na capital paulista a partir de algumas características, entre elas a cor da pele).
Há nesse momento de transição de governo uma maior esperança para que esses assuntos sejam endereçados internamente com a manutenção de políticas públicas e a implementação de outras, que podem incluir, inclusive, processos de reparação da escravidão negra no Brasil. Será um processo de longa resistência (inclusive aos núcleos neonazistas que se estabeleceram no País nestes sete últimos anos) e ao mesmo tempo um contínuo processo de reconstrução, em que o combate ao racismo seja protagonista, com a criação de um novo ministério.
Com a entrega do relatório sombra à ONU, ficou evidente para a comunidade internacional o ensejo da Articulação de reafirmar no Brasil o programa de enfrentamento a todas as formas de discriminação e racismo desenvolvido na Conferência de Durban, na África do Sul. Durante esses dois dias de audiências em Genebra, o governo brasileiro foi duramente cobrado por membros do CERD pelo cumprimento de um acordo que o País já ratificou no passado. O Brasil encontrava-se muito atrasado em seus relatos e prestações de contas, pois o último informe realizado ao Estado brasileiro ao Comitê da ONU se deu em 2020, sendo que ele se retratava ao período de 2004 a 2017. De lá para cá, praticamente nada foi feito.
Entre as temáticas apresentadas no relatório sombra e pontuadas na sabatina do CERD ao governo brasileiro estão o enfrentamento à fome, ao genocídio e à violência racial, o encarceramento em massa da população negra, a morbimortalidade, às crises econômica e sanitária e os impactos causados pela covid-19, afetando de forma mais letal a população negra.
De uma perspectiva de quem acompanhou internamente as audiências é possível destacar alguns momentos importantes em que a principal relatora do Brasil no CERD, a advogada independente Gay Mc Dougall, e os especialistas Mehrdad Payandeh e Eduardo Ernesto Veja Luna, se colocaram de maneira assertiva diante das negativas do Estado brasileiro em apresentar dados correspondentes à realidade do País.
Gay MacDougall, por exemplo, sublinhou que o “racismo é histórico, persistente, em todo o tecido social do Brasil”. Ressaltou ainda que o “relatório do governo cobre apenas dados desde 2017, deixando uma grande lacuna”. “Mulheres negras e indígenas são imprensadas em um racismo interseccional, inclusive durante a pandemia da covid-19”, disse ela. A relatora do CERD afirmou ainda que a pobreza entre a população negra não diminuiu no País, mas se consolidou diante de “programas sociais desmontados” nestes últimos quatro anos. Gay indagou à comissão do governo sobre a atualização no programa de cotas, sobre os níveis dos empregos públicos para afrodescendentes, sobre os programas para educar afrodescendentes e indígenas na discriminação no trabalho, e na esfera política, sobre as representações afro e indígena nas duas casas do Congresso.
Outra questão levantada por Gay Mc Dougall durante audiência do CERD de extrema relevância foi sobre o estado de implementação da lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar com ênfase nas disciplinas de História, Arte e Literatura.
Como se é sabido, o atual governo chegou a negar a existência do racismo no Brasil, causando um grande retrocesso nas políticas públicas existentes e ameaçando outras já existentes. Neste sentido, o relator Luna do CERD questionou o governo brasileiro sobre os frequentes crimes de ódio, pontuando que no Brasil não há ausência de lei, mas de sua execução. Perguntou ainda sobre os motivos das poucas investigações e condenações nos casos de extermínio à população negra. Nunca é demais lembrar que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.
O relator Payandeh Mehrdad foi na mesma direção ao questionar os altos índices de homicídios entre os brasileiros, com os afro-brasileiros sendo atingidos de maneira desproporcional pela violência; destacou ainda o impacto da violência contra mulheres negras que é muito maior que em relação às mulheres brancas. Mehrdad indagou quais medidas o Estado brasileiro está tomando para lidar com essa crise de violência contra mulheres e crianças negras e mulheres trans. Perguntou ainda aos representantes do Estado brasileiro o que está sendo feito para interromper a disseminação de armas de fogo. “Quais medidas estão tomando para o super encarceramento das pessoas negras? As principais vítimas são homens negros jovens; que apesar da morte de homens brancos ter diminuído, a de homens negros aumentou”, disse Merdad.
Na área da Saúde, o representante do governo, o secretário Raphael Câmara Medeiros Parente, chegou a dizer que no Brasil “só não se vacinou quem não quis”, negando a campanha antivacina deflagrada pelo atual governo. Os relatores do CERD foram enfáticos ao apontar que o coronavírus no Brasil atingiu de forma mais agressiva a população não branca, refutando os dados providos pelo Estado brasileiro de atenção ao tema. Os impactos da pandemia entre as camadas mais pobres, negras e indígenas ganhou espaço importante durante a sabatina do CERD.
É ainda entendimento da Articulação de Resgate e Reforço da Agenda de Durban, que não basta cobrar do Estado brasileiro ações que não foram realizadas. Diante da perspectiva de um novo governo, se coloca a necessidade de se avançar em algumas esferas como o debate sobre as reparações aos afro-brasileiros. Neste sentido, foi levada ao CERD a discussão de que as reparações implicam na transformação e na reabilitação das estruturas e relações fundamentalmente distorcidas pela escravidão e pelo colonialismo, e que sustentam a desigualdade, a discriminação e a subordinação racial contemporânea.
Já existe uma base legislativa para esse tão importante debate. O Estatuto da Igualdade Racial delineia em seu art. 4º, inciso VII, parágrafo único, a amplitude das políticas de ações afirmativas como medidas de reparação, que vão além das cotas e da reparação pecuniária, podendo ser interpretado como o aporte jurídico interno para a efetivação dos objetivos de Durban e para a promoção da memória, da verdade, da justiça, da reforma institucional e da reparação integral aos descendentes de africanos escravizados.
Portanto, torna-se necessário que o Estado brasileiro avance em políticas que possam efetivamente criar condições de desenvolvimento integral da população negra, nos seus mais diversos temas, seja na educação, na moradia digna, na saúde integral e que isso seja feito de forma mais urgente possível.