Estudioso francês diz que intolerância religiosa é sua maior luta na Bahia; leia entrevista

“Falo de candomblé e os alunos dizem que é coisa do satanás”, espanta-se Xavier Vatin

Por Roberto Midlej, do Correio 24 Horas

O francês Xavier Vatin, 44 anos,  doutor em antropologia pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, de Paris, ganhou notoriedade recentemente, depois que encontrou, em uma universidade dos Estados Unidos, a única gravação que se conhece da voz do escritor e folclorista Mário de Andrade (1893- 1945). Mas Vatin, que é professor de Antropologia desde 2006 em Cachoeira, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), estava nos EUA para realizar uma outra pesquisa, sobre a música brasileira, quando se deparou com mais uma surpresa, jamais ouvida por um brasileiro: a mais antiga gravação da voz de Mãe Menininha do Gantois (1894-1986). Aquelas  duas gravações haviam sido realizadas pelo americano Lorenzo Turner (1890-1972), que, em 1940, viajou pelo Brasil para registrar a presença das línguas africanas no país. Essa ronda de Turner acabou se tornando o tema do próximo livro que Vatin irá lançar. Mas, apesar de estar concentrado nesse trabalho, o francês diz que sua maior preocupação hoje no Recôncavo é lutar contra a intolerância  religiosa, embora seja ateu. “Falo de candomblé e os alunos dizem que é coisa do satanás”, espanta-se. Nessa entrevista ao CORREIO, Vatin fala sobre candomblé, educação e os motivos que o levaram a viver na Bahia.

Por que você veio realizar suas pesquisas na Bahia? E como foi parar na casa de Pierre Verger?
Eu vim à Bahia pesquisar a relação entre música e capoeira e Pierre Verger foi a primeira pessoa que encontrei aqui, por causa de um professor meu na França, que me indicou a ele. Eu tinha 21 anos e não tinha ideia de quem era Verger. Mas hoje, se estou na Bahia, é completamente por causa dele. Se não fosse ele, eu provavelmente teria amado a Bahia, mas seria apenas mais um lugar nas minhas andanças. Graças a ele, tive a sorte de conhecer Carybé, Mario Cravo, Jorge Amado, Gilberto Gil…

Durante um período, você viveu entre a Bahia e a França, mas já faz alguns anos que decidiu permanecer aqui. Por que?
Passei a residir permanentemente no Brasil em 2003. Quando surgiu a UFRB, fui aprovado num concurso para ensinar antropologia. Para mim, viver em Cachoeira tem um significado simbólico, afinal foi aqui que comecei minhas pesquisas. Além disso, a independência partiu daqui. Duvido que exista no mundo uma cidade com 30 mil habitantes como Cachoeira, com essa importância. Mas o meu maior papel como antropólogo na cidade é lutar contra discriminação religiosa, principalmente o preconceito contra o candomblé.

O que o motivou a se engajar nesse discurso contra a intolerância religiosa?
O Recôncavo, e especialmente Cachoeira, é a meca do candomblé. Mas, ainda assim, uma pessoa do candomblé aqui não se expõe com receio de ser retaliada. Nos meses de setembro, o povo de santo tem muita dificuldade de oferecer o caruru tradicional às crianças, porque os evangélicos  proíbem seus filhos de comerem, dizendo que aquilo é coisa do diabo. As igrejas evangélicas aqui eram 5 ou 6 quando eu cheguei. Hoje, são mais de 30. Não quero polarizar o conflito, mas a gente quer um diálogo e o respeito mútuo. O povo de santo não bate na porta de ninguém para converter as pessoas, mas os evangélicos têm uma lógica de catequese.

No fim de 2010, a Roça do Ventura, terreiro do candomblé de Cachoeira, teve um problema. O que aconteceu exatamente?
Para dar uma ideia, vou citar um caso que aconteceu no fim de 2010. Um advogado local, muito rico, queria fazer um condomínio na área da Roça do Ventura (terreiro do candomblé Jeje), aqui em Cachoeira. O terreiro, de 14 hectares, é equivalente ao Bate Folha, o maior de Salvador. O local foi soterrado e  destruído por esse advogado, que praticou ali uma política de grilagem. A justiça demorou cinco anos para julgar essa ação. Felizmente, foi favorável ao terreiro, que hoje é tombado pelo Iphan. Mas já haviam destruído a lagoa e árvores sagradas onde se colocavam oferendas. Também acabaram com os vestígios arqueológicos de 1830 que havia lá. Agora, imagina se uma pedra da Ordem Terceira do Carmo aqui fosse destruída… A polícia estaria lá na hora! São dois pesos e duas medidas.

Como seus alunos lidam com as questões religiosas? Você fala sobre candomblé em sala?
Falo de Charles Darwin e da Teoria da Evolução, por exemplo, e os evangélicos reagem negativamente. Falo de candomblé e eles dizem que é coisa do satanás. Um dia, levei todos ao candomblé. Não obriguei ninguém, mas fiz um pouco de terrorismo (risos). Muitos demonstraram, literalmente, ter medo de entrar no barracão, porque acham que o povo de santo é demonizado. Tenho muito receio dessas manifestações de intolerância porque, para mim, está muito claro que A Igreja Universal quer chegar à presidência, no máximo, até 2030. E alguns fiéis praticam fanatismo, que é a rejeição ao outro. Muitos quebram santos católicos, demonizam o candomblé e querem proibir o sacrifício de animais porque dizem que é uma barbaridade. Embora meu trabalho acadêmico seja sobre Turner, a minha luta continua no dia a dia, contra o preconceito e a intolerância.

Você vem de um país associado à excelência intelectual e acadêmica. Ficou chocado com a estrutura das universidades quando chegou aqui?
A França é um país pequeno, do tamanho da Bahia, mas tem 85 universidades públicas em que você paga R$ 500 por ano e nada mais. Da minha infância ao doutorado, sempre estudei em instituições públicas, sem pagar nada e até ganhei bolsas para estudar. Quando eu cheguei aqui, a Bahia só tinha uma instituição federal. Hoje, já tem seis federais. Isso é uma mudança radical e significa democracia da educação. Quando fui dar uma palestra em 92, na Ufba, no curso de música, não havia um negro sequer. Fiquei chocado quando me deparei com a realidade do racismo à brasileira. Aqui, o racismo velado.

Que mudanças você tem visto na educação brasileira?
Hoje, posso dizer seguramente que a UFRB tem 60 a 70% de negros. Nenhum dos meus estudantes nascido no recôncavo tem pais com nível universitário. Isso é uma mudança muito significativa! É uma evolução incrível, mesmo com tantos problemas. Mas vale lembrar que a França também tem os seus problemas, como a burocracia, ‘quase pior’ que aqui. E lá também há greves, inclusive de professores. O povo francês adora uma greve (risos)! E a extrema direita tem crescido, assim como o racismo. Há pouco tempo, houve uma passeata contra o casamento gay lá. Um absurdo!

Como você chegou às gravações de Mário de Andrade?
Foi em Bloomington, ouvindo um daqueles discos gravados por Turner e acabei encontrando aquela gravação por acaso. Eu conhecia Mario de Andrade, embora não fosse um especialista na sua obra. Mas, pela importância dele, achava que sua voz já estava registrada. Mas eu estava enganado! Em 1940, Turner gravou a voz de Mário de Andrade cantando junto com Rachel de Queiroz. Eles aparecem cantando músicas do folclore brasileiro e aquilo estava arquivado havia 75 anos. Por um acaso incrível, nenhum brasileiro havia despertado para aquilo. Falei, sem muito entusiasmo, para um colega, Carlos Sandroni, pesquisador de Mario de Andrade: ‘Ah, encontrei umas gravações de Mario de Andrade de 1940’. Sandroni tomou um susto, disse: ‘O quê?!’ (risos)

Você está fazendo um documentário sobra a Boa Morte?
É um filme sobre a relação entre o turismo étnico em Cachoeira e a Festa da Boa Morte, que traz muitos negros americanos para cá, desde os anos 1980. Eles viram aquelas senhoras negras vestidas de branco na Festa e ficaram encantados. E muitos negros da classe média dos Estados Unidos vêm pra cá até hoje e ficam fascinados com a festa. Eles vêm para a Bahia porque nos Estados Unidos não há nem culinária africana nem o candomblé como aqui. E, de alguma forma, esses negros foram fundamentais para a manutenção da Irmandade da Boa Morte, porque foram eles que compraram uma sede para o grupo. Se não fossem eles, a Irmandade teria acabado porque esse era o interesse da própria Igreja.

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