Eu preciso destas palavras – por Alex Ratts

Corpo: lugar negro de fala

no Blog do Alex Ratts

Alex Ratts
Alex Ratts – Foto Negro Nicolau

É da corporeidade como uma construção social – cor, traços e voz, também lugares e percursos, posições e posicionamentos – dimensões vistas em correlação, que emanam as palavras ditas e escritas sobre negritude e raça, que têm uma história e uma geografia, marcadas pelas relações raciais e pelo racismo.

As lideranças, que nos anos 1970, deram o termo “negro” ao movimento que elas mesmas forjaram, tinham em seus horizontes, integrantes com alguns fenótipos (um foco em determinadas corporeidades) e um conjunto que englobava, pessoas com vários matizes, muitas vezes denominadas por termos como “morenas”, “mulatas”, “crioulas” ou “caboclas”.

Para todas previa-se um “tornar-se negra” e se esperava que tivessem “consciência” negra”, processo diferenciado em face da corporeidade como cor e também como residência, parentesco, experiência cultural e relações pessoais. “Negros de pele clara” (Sueli Carneiro – Correio Braziliense, 29/05/04) têm um longo e conhecido engajamento no movimento, o que não implica em traçar apenas a linha de cor para tecer essa tela..

Negro e preto são cores/corporeidades políticas (ainda que haja diferenças para o significado de “preto” entre rappers ou congadeiros/as). O estado brasileiro é que assinala ou exige que se marque – em ritos de passagem – outras cores e categorias raciais e étnicas no nascimento, alistamento, registro ou ingresso na universidade – preta, parda, branca, amarela e indígena – que ainda não representam nossas identificações, mas permitem apreender situações de desigualdade.

Intelectuais ativistas como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, correlacionavam raça, gênero (ao tempo delas era “sexo”) e classe, indicando também a dimensão espacial, antecipando a categoria de interseccionalidade. Cada uma a seu modo, abordou a trama entre racismo, sexismo e segregação. Quando Lélia Gonzalez propõe o conceito de “lugar de negro” (oposto a lugar de branco) ela aponta “a divisão racial do espaço” (Lugar de Negro. São Paulo, Martins Fontes, 1982).

Mais que usar o conceito de interseccionalidade, é muito intrincado refletir e agir interseccionalmente. Nos discursos ou nas trajetórias individuais e coletivas se fazem presentes as várias dimensões da raça (cor, corporeidade), da classe (como posição social e identificação), o gênero (como construção e desconstrução) e o espaço (locais, trajetos, lugares, territórios) (Beatriz Nascimento – Meu negro interno – 1974)

Falar a partir de determinado lugar não significa emanar sua voz de um ponto estanque, ainda que a maior parte da população negra – que não usa estes discursos – experimente pouca mobilidade social.  Falar a partir de um ponto que se julga alto e distante das coletividades negras indica um descolamento, anúncio de uma solidão política.

Se uma pessoa negra de pele escura ou clara chega a espaços de visibilidade e/ou decisão, ela se encontra ali por uma conquista social e é importante que tenha em mente e acione as outras dimensões – gênero, espacialidades, classe para não se iludir com as supostas benesses da trajetória individual. Mesmo que não se torne ativista do antirracismo, os olhares enviesados (Milton Santos – Ser negro no Brasil hoje, Folha de São Paulo, 07/05/2000) – vêm acompanhados da dúvida sobre quem é, de onde vem, como chegou ali e o que pretende. As agências do racismo vêem além da cor, do corpo.


Alex Ratts – antropólogo e geógrafo, ativista e poeta

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