Ex-ministra Matilde diz não vê sentido em Estatuto sem cotas

Dois anos, quatro meses e dez dias depois de deixar o cargo, na primeira entrevista em que falou abertamente de sua exoneração da SEPPIR e da gestão do seu sucessor, o deputado Edson Santos, a ex-ministra Matilde Ribeiro manifestou desaprovação ao acordo que resultou na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial pelo Senado.

“Todo projeto tem uma alma. O centro do Estatuto são as ações afirmativas para a população negra. Da forma como foi agora, esse centro foi comprometido. O esqueleto se mantém, mas não faz sentido a aprovação do Estatuto sem as cotas, assim como não faz sentido o Estatuto sem uma visão que fortaleça essa construção da política da igualdade racial, que ainda não é vista pela sociedade brasileira como importante”, afirmou.

Para a ex-ministra, que faz questão de ressalvar que não está alinhada com os movimentos que pregam o veto e evita críticas direta a direção da SEPPIR, que conduziu o processo de negociação com o senador Demóstenes Torres, do DEM, de Goiás “faltou análise estratégica, faltou análise política”.

“Olhando de fora, a impressão é de que o momento estratégico era até novembro do ano passado. Em não tendo sido votado até novembro, devia ter sido feita uma avaliação de deixar as coisas e retomar lá na frente em outra conjuntura”, acrescenta.

Segundo a ex-ministra que, no final deste mês completa 50 anos, “o conteúdo do Estatuto tinha de ser mais contundente”. “Se tivesse nesse papel de negociação não forçaria para que ele fosse votado nesse momento”, insiste.

Na entrevista, que concedeu ao editor de Afropress, jornalista Dojival Vieira, Matilde conversou por quase duas horas na sede da Viração (ONG que publica a revista “Viração”, feita por jovens da periferia e da Febem e apoiada pela Unesco e pelo Unicef, na Rua Augusta), sobre a sua exoneração do cargo acusada de gastos excessivos no cartão corporativo, o que ela chama de uma “chapoletada”; da SEPPIR, do Governo Lula e do papel político que acabou de assumir.

Ela foi convidada na semana passada pela direção do PT paulista a assumir uma das suplências – a 2ª – do empresário e apresentador Netinho de Paula, candidato ao Senado pelo PC do B na coligação com o Partido. Observou ter recebido o convite com surpresa “porque não estava esperando esse tipo de retorno”. “Embora não estivesse pleiteando é hora de voltar”, acrescentou.

Leia, na íntegra, a entrevista da ex-ministra a Afropress.

Afropress – Ministra qual é a sua avaliação sobre o acordo feito pela SEPPIR para aprovar o Estatuto da Igualdade Racial, no Senado?

Matilde Ribeiro – Todo projeto tem uma alma. O centro do Estatuto são as ações afirmativas para a população negra. Da forma como foi agora, esse centro foi comprometido. O esqueleto se mantém, mas não faz sentido a aprovação do Estatuto sem as cotas, assim como não faz sentido o Estatuto sem uma visão que fortaleça essa construção da política da igualdade racial, que ainda não é vista pela sociedade brasileira como importante.

O momento em que foi votado não foi dos melhores. O presidente Lula não precisava de nenhum marco legal. Foi esse Governo que criou a SEPPIR, a política para os quilombolas, ou seja: apresentou proposição de mudanças fundamentais na política da igualdade racial. Era melhor aguardar um pouco mais e garantir negociações que não tirassem a essência do Estatuto.

O conteúdo do Estatuto tinha de ser mais contundente. Se tivesse nesse papel de negociação não forçaria para que ele fosse votado nesse momento.

Faltou análise estratégica, faltou análise política. Olhando de fora, a impressão é de que o momento estratégico era até novembro do ano passado. Em não tendo sido votado até novembro, devia ter sido feita uma avaliação de deixar as coisas e retomar lá na frente em outra conjuntura.

Afropress – Mas, a SEPPIR alega ter promovido reuniões em que ouviu entidades negras a respeito do acordo e da aprovação?

Matilde – Não adianta fazer uma avaliação chamando para uma reunião com 20, 30 pessoas. Talvez fosse o caso de se fazer uma audiência pública no formato que o STF promoveu para as cotase, no caso do Estatuto. Todo o debate feito acabou desgastando, agora tudo foi apressado demais.

Afropress – Faltou visão, então, de quem negociou?

Matilde – Tenho dificuldade de dizer isso. O próprio senador Paim teria dito que não tinha mais como manter os mesmos interesses naquele momento. Em relação ao ex-ministro Edson , todo o político quer deixar uma grande marca. A minha dúvida é se essa é uma grande marca. O contexto para o Brasil não era favorável.

Não existem leis completas. Dialogar e ter como principal interlocutor o DEM.. Não faz parte das minhas opções políticas. O que vejo é o seguinte: está feito, será sancionado e temos de tomar como lição e procurar construir anteparos a isso.

Por isso temos de estar atentos a política de quilombos, ampliar o diálogo com quem toma decisões na política. Outra coisa: não é hora de mexer com esse negócio [a votação da ADI dos quilombos] no Supremo Tribunal Federal.

Duas coisas considero fundamentais na agenda política: a manutenção do alerta em relação as cotas e a questão quilombola. A política de quilombos tem de ter respaldo na sociedade. As condições exigem respostas contundentes por parte do Governo.

O Estatuto está em baixa, mas é só uma peça do jogo. Isso não começou aqui, mas também não termina aqui.

Afropress – Se convidada, a senhora estará na cerimônia que deve acontecer no Planalto para a sanção do Estatuto pelo Presidente Lula?

Matilde – Não faço questão de estar lá. Faço questão de continuar discutindo o rumo da política da igualdade racial no Brasil. É um evento na história que pode ser revertido com uma avaliação do processo. Uma vez que chegou a esse ponto e não tem uma movimentação de peso para mudar o rumo, o sancionamento vai acontecer. Cabe a quem tem visão crítica, entender que isso aconteceu e não entregar o jogo.

Não me neguei a participar de nenhum momento estratégico, de dialogar com o PT, com o Movimento Negro. Mantive uma relação muito próxima em relação a CONAQ. Me coloco como colaboradora. Eu tomei a decisão de não fazer enfrentamentos. Mas, não faço questão de estar lá.

Afropress – Como é que foi e é a sua relação política com o seu sucessor, o ministro Edson Santos?

Matilde – Em relação ao ministro Edson, ele nunca foi meu concorrente, meu rival. Fiquei muito na torcida de tudo dar certo, embora sofrendo o impacto da “chapoletada”.

Afropress – A senhora não esteve na II Conferência de Promoção da igualdade Racial, realizada em Brasília, em junho do ano passado…

Matilde – Não fui convidada.

Afropress – Passados mais de dois anos, a senhora pode explicar melhor sua saída do Governo?

Matilde – Não tenho dúvida nenhuma de que minha saída do Governo foi o resultado de uma afronta ao Governo Lula e a construção da política de igualdade racial. Não foi um recado, foi uma “chapoletada”. A questão mais concreta foi a com a BBC [a entrevista em que ela disse que quem foi açoitado a vida inteira não tinha obrigação de gostar de quem o açoitou].

Uma resposta talvez infeliz da minha parte levantou uma onda de questionamentos. Tudo porque eu disse que quem tinha a lembrança do açoite, não tinha porque ter boas lembranças de quem o escravizou.

A situação no Brasil não está resolvida. Existem escravizados e escravocratas.

O Alexandre Garcia [jornalista da Rede Globo] chegou a dizer que eu não tinha condições de ser ministra. Essa situação me custou uma situação muito difícil, fui alvo de questionamento na Procuradoria da República, por parte da senadora Kátia Abreu, questionando se a afirmação não configurava prática de racismo. Ou seja: estava se criando a possibilidade de uso contra mim, de uma Lei criada para definir que racismo é crime.

Estou citando esse fato para dizer que já era alvo do interesse midiático, não por mim, mas por quanto a questão racial incomoda. Não era a mim, era ao presidente Lula, o destinatário desse tipo de questionamento.

Afropress – A senhora já se queixou em público de não ter tido apoio do Movimento Negro…

Matilde – Pelas minhas escolhas políticas acabei ficando sem apoio. O Movimento Negro não agiu a contento. A defesa foi pequena. Eu saí em acordo com o Presidente Lula.

Afropress – A senhora guardou alguma mágoa, do presidente por tê-la exonerado?

Matilde – Tenho uma admiração muito grande pelo Presidente Lula, pela condução que está sendo dada, com todas as contradições, tem um investimento em mudança. Meu acordo com o Presidente Lula foi de ser colaboradora, tendo por alvo a SEPPIR. Sou uma pessoa extremamente comprometida com a condução dessa política.

Afropress – Como a senhora enfrentou, de repente, o furacão da sua exoneração do Governo acusada de extrapolar gastos com dinheiro público?

Matilde – Minha vida pessoal foi virada de cabeça prá baixo. Não nasci em berço de ouro. Ainda machuca muito o fato de ter saído do governo com um ataque público de uma coisa que não fiz. Minha família, minhas irmãs [ela tem seis irmãs, duas do casamento do seu pai, Manoel, já falecido, com dona Cida, a quem considera sua segunda mãe] sofreram muito, até mais do que eu. A Cida, que todas temos como nossa segunda mãe, me ligava dizendo que a vizinha tinha vindo na casa dela dizendo que eu estava sendo acusada de roubar dinheiro do governo. Essa mágoa ficou e vai ficar pelo resto da vida. Então adotei uma postura recuada,não quer dizer deixar de agir politicamente.

Afropress – Qual o balanço que a senhora faz da política de igualdade racial nos dois Governos Lula?

Matilde – São oito anos de governo. Toda a construção da política de igualdade racial trouxe avanços sem precedentes no Brasil. As mudanças são favoráveis, mas é muito difícil construir. O Estatuto é um exemplo.

Afropress – Como recebeu a indicação para ocupar uma suplência na chapa com Netinho para o Senado?

Matilde – Me surpreendeu porque não estava esperando esse tipo de retorno. Mas, embora não estivesse pleiteando é hora de voltar para um papel mais visível na campanha. Tive convites explícitos para ir para outros partidos. O PC do B, por exemplo, me convidou de maneira muito enfática. Mas, meu DNA é petista. É uma chamada que vale a pena responder. Buscar condições mais visíveis. A disputa não será fácil. O jogo é prá valer e não é um amistoso.

O Netinho não se tornou candidato a senador com toda essa inserção à toa. Acompanho a vida do Netinho, desde a época do Negritude. Ele está num momento de maturidade política importante. O histórico do Netinho é muito próximo do meu. Temos de apostar.

Afropress – Qual na sua opinião deve ser o papel do Movimento Negro no atual momento do país?

Matilde – Fazer política concreta, dar significado à política da igualdade racial. Não são só leis, não são só propostas. Mas ter um pensamento estratégico de colocar propostas em desenvolvimento, sem guetizá-las. É preciso que tenhamos uma estrutura institucional que nos favoreça, respeitando processos organizativos para tomada de decisões, mas tendo um lugar decisório.

Afropress – A senhor deixou amigos na SEPPIR

Matilde – Sim, deixei sim. Sempre mantive diálogo como Martvs [Chagas, Secretário de Ações Afirmativas], com o Flavio Jorge [liderança negra de S. Paulo, atualmente na Fundação Perseu Abramo, do PT].

Afropress – A senhora nunca fala da sua vida pessoal

Matilde – Já fui casada duas vezes. Estou separada há mais de 10 anos. Não sei se casarei de novo. Filhos, agora só adotando. Sou muito dedicada a minha família. Vou ao supermercado de chinelo havaiana.

 

Fonte: Afropress

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