Fábulas, por Sueli Carneiro

Fonte: Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

Era uma vez um reino grande e próspero em que o povo vivia livre e feliz. Tal era a sua abundância e poder que provocava inveja incontida nos povos vizinhos, sentimento que, em parcelas desses povos, foi se transformando em ódio e desejo de destruição daquele paraíso que não conseguiam alcançar. E começaram a maquinar formas de atingir aquele reino até que enfim, prontos, desencadearam sobre ele atos de infame violência. Aquele povo acostumado á segurança e ao bem estar ao ser atingido daquela forma inesperada quedou perplexo diante do horror e da destruição. Sentiram-se pela primeira vez fragilizados, frente a inimigos sem rosto e sem causa conhecida, generosamente acolhidos em seu território, embora vindos de terras e culturas distantes.

Convocou-se a assembléia. Grande parte da multidão exigia vingança. O rei consulta o oráculo porque sente crescer em si mesmo o desejo de vingança que até então lhe era desconhecido, e ao mesmo tempo diminuir o seu sentido de justiça, o valor que sempre orientou o seu reino. O oráculo lhe responde através da voz de um pequeno príncipe que diz: “Tu te tornas também eternamente responsável por tudo aquilo que não cativas.”

Atônito com a resposta, o rei esforça-se por compreender o enigma. Chama os maiores pensadores de seu reino.

Aos filósofos requisita estudos aprofundados sobre o que motiva a inveja e ódio entre os seres humanos. Dos sociólogos exige diagnósticos comparativos sobre a situação material dos outros povos em relação ao seu; aos economistas pede que investiguem com rigor e precisão a hipótese da existência de um impacto negativo das políticas econômicas desenvolvidas pelo reino sobre outros povos; aos cientistas políticos solicita um estudo detalhado sobre a conjuntura internacional, e um levantamento de todos os pactos, convenções, tratados acordados pelas nações e o posicionamento de seu país em relação a cada um deles. À inteligência pede que espionem a opinião pública mundial, se infiltrem nas sociedades e lhe tragam dados confiáveis sobre o que se diz e se pensa sobre o seu reino; aos cléricos solicita orações que lhe tornem capaz de tocar as mentes e os corações dos outros povos.

Aos chefes militares exige o rastreamento preciso de todos os focos de violência do mundo e que, numa perspectiva multidisciplinar, os dados por eles encontrados, sejam cotejados com os achados dos filósofos, sociólogos, economistas e espiões para se verificar a existência de articulação entre todos os fatores pesquisados pelas diferentes áreas.

Na multidão chocada, cresce o medo de que o velho monarca, herói de outros tempos, esteja fraquejando diante do inimigo, ou de que a idade avançada esteja obscurecendo o seu juízo. Cogitam substituí-lo ou convocar os guerreiros para administrarem a crise. Consultam também o oráculo, e quem lhes responde é um velho gladiador, Maximus que serviu, como general a um dos Césares, Marcus Aurelius.
Maximus lhes conta a última conversa que teve com César, antes de sua morte. Perguntou-lhe César após mais uma sangrenta batalha contra os bárbaros: – Maximus porque estamos aqui? Responde-lhe Maximus, que é pela glória de Roma. César diz a seu general que quando um homem vê o seu fim quer saber a razão de sua vida. Olha ao redor, homens mortos, feridos ou agonizantes, cenário de quase toda a sua vida e conclui: “Conquistei, expirrei sangue, expandi o Império. Eu trouxe a espada, nada mais.” O general orgulhoso lhe diz. “Alteza, não sobrou ninguém para lutar”. Cesar responde “Sempre sobra alguém para lutar”.

O rei convoca novamente a assembléia. Os estudiosos lhe apresentam os resultados dos estudos realizados. Dizem que há inúmeros focos de guerra no Continente Africano; há a questão da Palestina, da Colômbia, dos País Basco, de Chiapas, da Irlanda do Norte, da Caxemira entre outros. Que dois terços da humanidade vive em condições de indigência humana. Que as políticas econômicas em curso agudizam as formas de exclusão. Que o racismo e a intolerância crescem no mundo. E que se torna cada vez mais insustentável a existência de ilhas de prosperidade cercadas de bolsões de misérias por todos os lados.
O rei impressionado pergunta. – E tudo isso é culpa nossa?
– Não senhor, nem tudo. Mas o mundo entende que só nós dispomos dos meios para liderar uma mudança real nesse quadro.

Quanto custa a guerra de retaliação, e quanto custa reparar esse mundo? pergunta o rei? – Senhor, uma guerra contra esse tipo de inimigo, tem um grau de imponderabilidade que compromete qualquer estimativa.
Agora a reconstrução do mundo é algo que podemos planejar, definir prioridades e um cronograma de desembolso sustentado porque a ausência de guerra eleva as condições de estabilidade econômica mundial apesar dos sinais de recessão.

O rei compreendendo então plenamente o sentido das palavras do oráculo, decide contrariar a opinião majoritária de seu povo e convoca seus chefes militares para uma nova cruzada: bombardear o mundo de esperança, solidariedade, justiça social, eqüidade, direito dos povos á autodeterminação e ao desenvolvimento; cancelamento das dívidas de países miseráveis.

Os povos atingidos foram cativados pela sabedoria daquele monarca e para preservarem o estado de bem-aventurança que experimentavam, encarregarem-se eles próprios de capturar seus malfeitores que espalhavam medo e terror naquele reino.
E então, todos foram felizes para sempre.

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