Faremos Palmares de novo

O ano de 1988 foi marcado por experiências significativas que ficaram na memória do ativismo negro no Brasil. A promulgação da Constituição cidadã, contemplando demandas do segmento, o centenário da abolição da escravatura, ocorrido entre festas e protestos, e a criação da Fundação Cultural Palmares FCP/ MinC, em meio à turbulência resultante das divergências entre o Estado e expressiva parcela do movimento social, são episódios importantes que nos remetem a profundas reflexões.

No momento em que se aproximava o centenário da abolição da escravatura, interpretações dissonantes acerca da ocasião tornaram-se perceptíveis para maior percentual da sociedade brasileira. A Nova República de José Sarney, primeiro presidente pós-ditadura, eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral na chapa encabeçada por Tancredo Neves, falecido antes mesmo de assumir o mandato, regozijava-se com a ideia de comemoração daquele centenário.

A visão do Palácio do Planalto era um tanto distinta da referente ao Ministério da Cultura, que, nos anos anteriores, havia, por intermédio da Fundação Pró-Memória, reconhecido oficialmente, no âmbito da sua estrutura, o Memorial Zumbi. Essa instância era constituída por especialistas, representantes do poder público e da sociedade civil, cujo objetivo se fundava na valorização e no reconhecimento oficial da Serra da Barriga, sede do Quilombo dos Palmares, em União dos Palmares/ AL, como patrimônio cultural afro-brasileiro.

O tombamento daquele sítio histórico ocorreu em 1985. Posteriormente, dada a proximidade do centenário da Lei Áurea, o governo federal baixou o Decreto 94.326, de 13 de maio de 1987, criando o Programa Nacional do Centenário da Abolição da Escravatura e um conselho consultivo para pensar as ações alusivas à data. Conforme Elisa Larkin Nascimento, a Fundação Cultural Palmares nasce como desdobramento dos trabalhos desenvolvidos pelo Memorial Zumbi e pela comissão composta para acompanhar o referido decreto.

A Palmares, quando surge, não é fruto de consenso, pois, se havia tendência do movimento negro trabalhando por dentro das estruturas de poder, existiam outras que refutavam qualquer gesto oficial capaz de dar visibilidade à celebração. A Marcha contra a Farsa da Abolição, no Rio de Janeiro, em 1988, era evidência disso. Foi necessário certo tempo para que as relações entre a Palmares e o conjunto das entidades negras lograsse êxito.

Em três décadas de existência, a instituição teve como presidentes Carlos Alves Moura, Adão Ventura, Joel Rufino dos Santos, Dulce Pereira, Ubiratan Castro, Zulu Araújo, Elói Ferreira, Hilton Cobra, Maria Aparecida Abreu, Erivaldo Oliveira e Vanderlei Lourenço. A maioria das gestões conseguiu estabelecer diálogos profícuos com o movimento negro. Ainda que cada dirigente tivesse seu ponto de vista acerca do papel a ser desempenhado pela entidade, era sabido que, sem o respaldo da sociedade civil organizada, qualquer projeto seria inócuo.

As questões orçamentárias habitualmente comprometeram muitas aspirações e frustraram vários de seus presidentes. Não obstante, a instituição pública teve atuação relevante, por exemplo, na 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001 na África do Sul, bem como na 2ª Conferência dos Intelectuais da África e Diáspora (Ciad), em 2006, no Brasil, e no 3º Festival Mundial das Artes e Culturas Negras, em 2010, no Senegal.

Esse percurso é contraponto à situação recente pela qual passa a Palmares, na medida em que o atual presidente, Sérgio Camargo, que, curiosamente, é filho de Osvaldo Camargo, destacado militante negro, parece não dispor das condições intelectuais e cognitivas necessárias para compreender a dimensão do que foi construído até aqui. A perversão dos valores que fizeram da Palmares referência, apesar das limitações, evidencia assustadora subserviência à casa-grande, digna de estudos realizados por Frantz Fanon.

Diante das circunstâncias, faz-se urgente o enfrentamento, por via da mobilização de organizações do campoo democrático e da apelação aos mecanismos jurídicos, em defesa do que nos legaram ativistas históricos. Que a reação coletiva ao descalabro seja embalada pelos versos de José Carlos Limeira: “Se Palmares não existe mais/ Faremos Palmares de novo”.

*Nelson Inocêncio é professor de artes visuais e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UnB)

Foto em destaque: Reprodução/ Correio Braziliense 

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