Fonte:Folha de São Paulo –
Documentário da National Geographic usa diversidade étnica de Nova York para recontar migrações pré-históricas
Trabalho mostra projeto que usa amostras genéticas de povos distintos para montar árvore genealógica de toda a população global
O detalhamento da prova científica de que toda a humanidade descende de uma única população africana pode ajudar a construir um mundo de tolerância racial. Ninguém, contudo, deve esperar milagres, diz o diretor do projeto que está mapeando o DNA de povos do mundo inteiro desde 2005.
O geneticista Spencer Wells, estrela do documentário que a National Geographic produziu para divulgar o trabalho, diz que a origem comum “é a principal mensagem social do filme”, mas que o conhecimento científico tem limites em sua capacidade de mudar o mundo.
“Há um monte de gente por aí que prega o ódio racial por diversas razões, e não necessariamente a ciência vai mudar a cabeça deles”, diz. “Muita gente, porém, poderá se identificar com aquilo que estamos dizendo. Alguns líderes religiosos de fato costumam dizer que todas as pessoas fazem parte de uma mesma grande família, e é isso que nós estamos mostrando.”
Wells é diretor do Projeto Genográfico, iniciativa que a National Geographic e a IBM lançaram em 2005 para bancar testes genéticos de ancestralidade em pessoas do mundo todo. A ideia era mapear o histórico de migrações desde que os primeiros humanos deixaram o leste da África para explorar o resto do mundo. Os resultados do projeto vêm sendo publicados gradualmente em estudos científicos, mas o trabalho que deve ter maior impacto no público é mesmo o filme que estreia domingo que vem na TV.
“A Grande Árvore Genealógica” parte da proposta de que toda a diversidade genética humana do mundo cabe hoje em um único bairro, o Queens, no leste de Nova York, onde vivem imigrantes de praticamente todos os cantos do planeta.
Feira diversificada
Recrutando pessoas para doar amostras de DNA numa feira livre, Wells acha afro-americanos, indianos, tailandeses, gregos, bósnios, irlandeses etc. cuja ancestralidade dá conta de recontar a pré-história de todos os povos do mundo.
O Projeto Genográfico ajudou a fortalecer a teoria de que toda a humanidade descende de um “Éden” africano. Os cromossomos Y de todos os homens do mundo remontam a um único “Adão” que viveu 60 mil anos atrás. E uma “Eva” ainda mais antiga liga toda a humanidade atual por meio do DNA de suas mitocôndrias -estrutura celular que herdamos apenas de nossas mães.
Para além disso, porém, o projeto coordenado por Wells mais bagunçou do que organizou a história de migrações humanas, que trabalhos anteriores em genética e paleontologia estavam tentando pintar.
“Resultados que colhemos no Chade, por exemplo, mostram que houve uma grande onda migração de volta à África num período”, conta Wells. Em alguns lugares onde o Genográfico já conseguiu detalhar histórias inusitadas de povos pequenos. “A população que estudamos nas Filipinas, os Aeta, está conectada a uma onda de migração muito antiga, e não se parece com povos asiáticos ao redor porque ficou isolada.”
De volta à África
O grande mérito do projeto, ao que parece, está sendo o de detalhar um panorama geral que já estava havia sido determinado por outras pesquisas. Poucos geneticistas populacionais, por exemplo, haviam olhado com tanto afinco para o que aconteceu na África antes de os humanos saírem do continente. Wells e colegas mostraram parte do processo que criou a diversidade genética que existe dentro do continente. “Populações distintas no nordeste e no sul da África ficaram separadas talvez por até 100 mil anos”, diz o cientista.
A maior parte da história das migrações humanas contadas no documentário, porém, não é baseada em descobertas do Projeto Genográfico em si. O que também não faz diferença, já que o objetivo do filme é mesmo o de mostrar para o grande público o que células e cromossomos têm a ver com o ideal de democracia racial: 99,9% do genoma de todas pessoas é virtualmente igual.
Para ilustrar as migrações da pré-história, Wells reúne todos os seus voluntários do Queens formando um mapa-múndi num parque, de acordo com a ancestralidade de cada um. No fim, todos terminam de mãos dadas no pedaço de gramado que representa a África. É uma pieguice perdoável, já que passa a mensagem de Wells de maneira mais do que contundente.
Parentesco providencial
Alguém pode argumentar que a prova dessa origem comum não deveria ser pré-requisito para a paz na humanidade. Assim, se não fossemos todos parentes distantes, seria possível justificar a segregação étnica. Mas o fato de que todos os humanos são, sim, parentes, faz diferença para alguns.
Eamon O’Tuama, um músico irlandês, ficou sabendo do trabalho de Wells no Queens e foi à feira com um objetivo específico: ele queria provar que seu DNA tinha relação com o de povos asiáticos. A intenção era convencer os pais conservadores de sua namorada coreana de que ele se qualificaria como bom marido, apesar de não ter nascido na Coreia. “Não sei se a estratégia vai dar certo, mas não custa tentar”, diz o pretendente, em depoimento ao filme.
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Discussão com índios atrasou iniciativa local
A única falta a lamentar no novo documentário da National Geographic talvez seja a ausência de resultados do Projeto Genográfico sobre a ocupação das Américas. A culpa, porém, não é dos cientistas.
Para coletar DNA de índios, pesquisadores tiveram de enfrentar diversas dificuldades. No começo do projeto, em 2005, algumas associações indígenas acusaram a National Geographic de tentar usar as amostras genéticas para estudos médicos.
“Se nós trabalhássemos com genética de doenças, poderíamos gerar conhecimento patenteável e explorar comercialmente o DNA dos indígenas”, explica Fabrício Santos, geneticista da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que coordena o Genográfico na América do Sul. “Mas nós não trabalhamos com isso. Geramos conhecimento histórico de ancestralidade, só.”
Demorou para desfazer o mal entendido. Começando a trabalhar em 2007, só agora Santos começou a analisar 1.100 amostras de DNA, que vieram de povos dos Andes. Para estudar índios do Brasil, sua autorização entrou agora nos estágios finais da burocracia.