A filosofia política de Mujica por ele mesmo

Para ex-presidente uruguaio, é preciso viver como a maioria, aproveitar os dias, libertar-se dos interesses e sonhar com o que virá depois de nós

Por Pepe Mujica. Tradução de Simone Paz Hernandez e Cauê Ameni do Outras Palavras

Na Revista Fórum 

Amigos, não posso falar português, vou falar meu castelhano devagar, porque no fundo é a mesma língua. É a mesma dor, em parte história. Há um bom tempo penso que o homem é um animal gregário, é um macaco difícil, que não pode viver sozinho. Por que começo por aqui? Porque precisamos ter, primeiro, uma ideia do que é o homem, como estrutura, do material que nos compõe, sobre o qual se constrói a cultura, a histórica.

O homem é um bicho que não pode viver na solidão, necessita da sociedade. Alguém disse que existem apenas a família e o indivíduo. Penso que além disso existe a sociedade. Se adoeço do coração, preciso de um cardiologista. Se minha casa desaba, preciso de um pedreiro. Quando se gasta um sapato, alguém tem de fabricar um outro. Provavelmente a civilização começou quando algum antepassado nosso, em apuros, gritou desesperadamente “Ajude-me!”. Nasceu do indivíduo e do reclamar, a sociedade . Seguimos pela vida com essas contradições. Como qualquer animal, temos uma cota de egoísmo saudável, porque temos que lutar por nossa vida e pela vida daqueles que gostamos. Entretanto, como somos um animal social, construímos a civilização como a maior herança que recebemos e que deixamos. A civilização criou a solidariedade intergeracional. Desde os que descobriram o fogo e a roda, até os que fazem hoje em dia a biologia molecular e inventam a robótica. Esse pacote histórico que recebemos, devemos à civilização.

Significa que o egoísmo e a solidariedade se entrelaçam em forma de civilização. Mas a natureza nos presenteou com uma coisa chamada consciência e isso nos permite trabalhar e enquadrar nosso egoísmo até certo ponto, e fazê-lo transcender, por efeito da cultura e da civilização. Isso é tão importante que hoje vivemos quarenta anos a mais de vida, em média, do que há 150 anos. Pense por um minuto no que significam 40 anos a mais de vida sobre o planeta Terra. Em meio a uma civilização composta por desastres também, porque somos bons e maus. Todos nós seguimos com essa contradição. Por isso existe a política. Se fôssemos perfeitos e fôssemos deuses, não precisaríamos da política. Mas precisamos da sociedade para viver, apesar de sermos conflitivos, porque cada ser humano é ele, porque temos distintas origens, porque temos visões distintas, tradições, religiões, culturas, classes sociais que nos originaram. A sociedade é uma panela borbulhante de conflitos e temos que administrar os conflitos para poder conviver. Este é o papel transcendente da política, no seu sentido mais profundo.

Aristóteles tinha razão quando disse: “o homem é um animal político”, porque ele não é perfeito, nem pode viver na solidão. Tem que viver em sociedade com seus próprios defeitos e limitações. E é nesses conflitos que o papel transcendente da política é estabelecer os limites.

Quanta angústia e dor aguentamos, e como fazemos para transcendê-las? Sei que estas são generalizações, mas a política foi reduzida a um simples receituário econômico, sem pensar no que é o homem, a ética e a filosofia. Se cada um analisar sua vida, verá que provavelmente as decisões mais importantes que já tomou não tinham nada a ver com os interesses econômicos. Quer dizer que não temos interesses econômicos? Não. Quer dizer que as coisas são muito mais complexas. Temos interesses econômicos, mas também temos outros interesses. Somos individualistas? Claro que somos individualistas! Mas por que nos jogamos dentro de um edifício em chamas para tirar as vítimas, sem nem imaginar as consequências? Porque também temos um animal social dentro de nós. Por que socorremos solidariamente quando há um desastre, um terremoto ou um furacão? Porque somos por um lado egoístas, mas por outro lado somos sociais também. Por isso, quero quebrar o paradigma deste tempo onde tudo é mercadoria, na política. Fazê-lo de modo transcendente, para nos livrarmos da vulgaridade. A política não é uma profissão para viver ou enriquecer, é uma paixão superior, que sopra história. Há interesses na política, mas são interesses morais, de outro tipo. O carinho das pessoas e a sociabilidade do povo não se compram com dinheiro. Isso não é subornável. Mas o que está acontecendo por todos os lados? Pessoas rendidas à cultura dos nossos tempos, que vivem em função da acumulação, terminam confundindo essas coisas com o afã de enriquecer ou ganhar dinheiro. E quem entra na política com esta motivação não faz outra coisa que cair em uma armadilha.

Veja bem, não sou intolerante com quem gosta demais de dinheiro. Essas pessoas que entrem para o comércio, para a indústria, que multipliquem sua riqueza em uma sociedade e paguem seus impostos. O problema é quando se usa da política para ganhar dinheiro. Isso mesmo depois da invenção das repúblicas modernas. Por que digo isso? Porque se a política moderna é a expressão da maioria, temos que viver como vive a maioria, não como a minoria. É isso que nos apaixona na política: ter corpo e alma como a maioria, não como a minoria. Não se trata de ter birra dos ricos. Não é isto que estou tramando. Temos que eleger bem o campo e o alvo para ter rumo na vida e não misturar uma coisa com outra. Isso está nos trazendo duros problemas na América Latina, por todos os lados. E reitero, na política existem interesses, mas estes não devem ser em relação ao dinheiro.

Como diz um poema gaúcho em meu país: “não me venha falar do campo, com olhar de forasteiro, pois não é como ele aparenta, mas como eu o sinto”. Há coisas que não têm preço, há coisas que não se compram, assim como não podemos ir ao supermercado e dizer: “me dê mais cinco anos de vida”. Temos uma fita que em algum momento vai se cortar. Não deveríamos esquecer nunca isso, para entender que a vida não é uma coisa, ela deve ser vivida — assim como nem tudo se compra com dinheiro. Seguramente tenho um monte de defeitos, sou um velho resmungão, mas tenho autoridade para dizer essas coisas. Sinto-me um homem feliz e irei morrer feliz, porque vivo, sonho e caminho da forma que penso. Estou aqui porque gosto do povo brasileiro. Porque antes de mais nada sou latino-americano, depois sou uruguaio. Por ser latino-americano, pertenço a uma nação frustrada, que fez vários países, mas não foi capaz de construir uma nação. E essa nação será ou não será. Mas no caso de ser, será com a Amazônia ou não será. Por isso, venho aqui interessadamente, do ponto vista estratégico. Nada disso irei presenciar, pois tenho quase 81 anos. Entretanto, para viver temos que ter algum horizonte. Temos que ter uma estrela, temos que ter um rumo. Uma grande causa para os americanos é a integração, para sermos alguém no mundo. A Comunidade Europeia, um conjunto de países com línguas que não se entendem e com milhares de anos em guerras internas, segue construindo sua unidade. E é hoje o maior polo desenvolvido, com centenas de milhões de pessoas. Do outro lado, há um antigo conjunto de nações, porque a China é um estado multinacional, não nos esqueçamos. Lá existem minorias, algumas com 50 milhões de indivíduos. Falam outros idiomas que podem espalhar-se até a Índia.

São gigantescas potências. Como negociar com as mesmas condições desses monstros? Nós, atomizados em um monte de repúblicas. Inclusive o grande Brasil: grande para nós, pequeno para o mundo, porque vem na corrida tentando alcançá-los há anos. Quanta vantagem sobre nós possui a pesquisa nas universidades do mundo desenvolvido! Quanto controle de conhecimento! A Coreia do Sul, sozinha, registra tantas patentes quanto toda a América Latina.

Compatriotas, queridos compatriotas, a batalha da integração é a batalha do desenvolvimento, de juntar a inteligência, de unir as universidades, o conhecimento. De ter políticas capazes de garantir que não nos roubem um só homem da ciência porque pagamo-os mal. Por que? Porque nesta partida se joga o futuro de nossos filhos, de nossas vidas e de todos os demais. Hoje sabemos que a riqueza mais importante é o conhecimento. E os recursos naturais contam? Claro que contam. Portanto, temos que formar pessoas inteligentes e capacitadas na prática e na elaboração. Estamos na porta de outra grande revolução, assim com foi a da informática e como está sendo a biológica. Vamos assistir nos próximos 30 anos a uma invasão da inteligência robótica aplicada ao trabalho, que mudará a situação das pessoas no ambiente de trabalho. Isso será positivo e negativo. Como todos os progressos tecnológicos importantes, vai deixar muita gente sem trabalho, ao passo que vai acabar com muitos trabalhos desumanos.

Precisaremos de novas legislações sociais para atender os conflitos não só nas relações de trabalho, mas também nas horas de trabalho. Não me parece ruim que os robôs trabalhem para os homens, me parece fantástico. Porém, sempre e quando trabalhem para a humanidade inteira, sempre e quanto isso ajude a humanizar a jornada de trabalho, sempre e quanto isso nos proporcione mais tempo livre para viver. Essa vai ser a batalha política das próximas gerações. Por essas questões estou aqui, para ajudar as pessoas a pensar. Não há receitas e caminhos honestos, nunca triunfaremos totalmente na vida. O verdadeiro triunfo é o caminho. Não há um prêmio no final da vida — nem na vida individual, nem na coletiva. O único prêmio é o caminho mesmo, a beleza da vida e viver por uma causa, com sentimento e compromisso. Ter uma fresta de liberdade, orientar parte de nossa vida para as coisas que nos motivam. Por isso, tento dizer, em especial à base das universidades latino-americanas, aos jovens que estão se somando  à sociedade, o seguinte: cometam os erros de seu tempo, não os erros do nosso; e que tenham a coragem de viver a aventura. Afinal, não sabemos a fundo de onde viemos. Mas tampouco sabemos para onde vamos.

Esta é a fala introdutória de Mujica, na entrevista que concedeu em 27 de abril a publicações brasileiras, reunidas no Centro de Mídia Barão de Itararé. Ouça a entrevista completa aqui.

Foto de capa: Rafael Vilela, Mídia Ninja

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