SÃO PAULO E PORTO ALEGRE – Um dos principais intelectuais do Fórum Social Mundial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos desembarca na celebração de 10 anos do Fórum Social Mundial (FSM) sem otimismos. Ele pede menos triunfalismo aos ativistas e faz um alerta: a próxima década será mais difícil para os movimentos sociais e os governos progressistas. Boaventura afirma que antes de debater o socialismo do século 21, como pretendem, as esquerdas precisam cuidar das investidas de Barack Obama na América Latina, visando a desestabilização de governos nacionalistas. Ele aponta um crescimento dos paramilitares pelo continente, em reação ao nacionalismo crescente dos novos governos latinos.
Admirador do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Boaventura avalia, em entrevista ao GLOBO, que apesar de notórios avanços, o governo tem pecado em pontos cruciais para os movimentos: a política ambiental e a desatenção para a violência no campo. “Mataram mais indígenas nos governos Lula que nos de Fernando Henrique”.
Boaventura considera ainda que Lula parece preocupado demais com as eleições e as alianças, não dando importância ao retrocesso de políticas sociais. Ele pondera que a culpa não é só de Lula:
– Há um Brasil, que é um Brasil antidemocrático, de violência, de um fascismo social de certas camadas das classes dominantes. São forças que ainda não aceitaram o jogo democrático e usam como estratégia a violência.
Boaventura é professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. Ele também é coordenador científico do Observatório Permanente de Justiça. Abaixo, os principais trechos da entrevista:
O GLOBO– Afinal, qual foi o resultado de uma década de FSM?
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS – O FSM teve um impacto superior ao que se imaginava. Em vários níveis: o fórum ajudou a construir uma consciência mundial dos movimentos sociais, mostrando que os partidos não são a única via das mudanças. Foi na América Latina o seu maior impacto. Não se pode explicar as transformações políticas do continente na década sem o FSM. Não se explicam os governos progressistas sem essa mobilização, desde a Bolívia, a Venezuela, o Brasil, o Paraguai. O protagonismo dos movimentos produziu as transformações políticas. Além disso, o FSM mudou o discurso e até um pouco da prática do FEM (Fórum Econômico Mundial). O Banco Mundial ficou mais sensível às dívidas dos países pobres. Foi uma década da qual devemos nos orgulhar.
– O senhor citou o Brasil nesse processo de mudanças de governos mais ligados ao ideário do FSM. Como o senhor analisa essa relação Lula e FSM?
BOAVENTURA – Lula esteve sempre no FSM. Além de liderar um partido, ele já era um homem com uma história toda fundamentada dentro do movimento social. E, portanto, essa presença de um político que construiu seu nome no movimento e não no partido foi muito importante para o Fórum e tenho certeza também de que o Fórum ajudou o presidente Lula a ter a sua imagem internacional focada em um mundo melhor. Embora sejam críticas ao presidente Lula, as organizações sempre tiveram um grande carinho por ele, ainda que por vezes se distanciassem de suas políticas.
– Qual é a perspectiva que o senhor levará ao FSM?
BOAVENTURA – Esta década que estamos entrando será menos fácil para as forças progressistas do que foi a década anterior.
– Por quê?
BOAVENTURA – Porque os ganhos que, por via democrática, os partidos e movimentos de esquerda conseguiram nesta década, causam incômodo ao capitalismo global. Eles querem os recursos: o gás natural, o petróleo, a eletricidade, a água… Esses governos e os movimentos que têm por trás deles têm assumido posições mais nacionalistas. E isso causa uma reação. Temos que dar nomes às coisas, mesmo que sejam da década passada: o imperialismo americano. A América Latina é uma zona de influência dos Estados Unidos. Na década que acaba de terminar, eles estiveram envolvidos no Oriente Médio. A Ação do imperialismo aqui foi muito débil. Acontece que isto está mudando. (Barack) Obama deve fazer um redirecionamento para a América Latina. As sete bases na Colômbia e a quarta frota são grandes indicadores disso. E o Brasil, muito mais forte agora, tem tido uma política externa independente, de afirmação de continente, no sentido de mostrar aos Estados Unidos que a América Latina não é um quintal. Veja a posição do Brasil em Honduras. Então, os Estados Unidos estão muito inquietos. Estou temeroso. Não estou otimista acerca das estratégias que começam a ser aplicadas para desestruturar os governos progressistas da AL.
– Mas há indícios dessa inquietude ou dessas estratégias americanas?
BOAVENTURA– Posso dar exemplos. Trabalho muito em todo este continente. Uma das coisas que mais me preocupa é a emergência, cada vez mais significativa, embora não falada nos meios de comunicação, que é o crescimento do paramilitarismo. Eles não estão presentes apenas na Colômbia. Estão muito ativos na Bolívia, Equador e Venezuela. Os paramilitares estão matando todos os dirigentes jovens das comunidades da zona fronteiriça das Esmeraldas, no Equador. Isso não sai nos noticiários. Fico preocupado com essa estratégia também nos outros países, no meio rural, que é onde está a terra, o agronegócio, a biodiversidade, o petróleo e o gás natural. Talvez esta seja uma década de desestabilização. O FSM tem que tirar uma posição muito forte e estruturada em defesa da democracia e dos movimentos sociais. Inclusive há no Brasil a tentativa de criminalização dos movimentos sociais, principalmente no RS. E está acontecendo o mesmo no Peru, no Chile e na Argentina. Essa década será mais difícil e problemática para a esquerda progressista. Desejo levar essa análise ao FSM porque há um certo triunfalismo, muito se fala em socialismo do século 21, mas o que vejo é outra coisa.
– Essa sua avaliação demonstra que o senhor descarta uma mudança com Obama, como muitos movimentos esperam?
BOAVENTURA – Obama é uma grande desilusão. Ele está dentro de um sistema que não lhe permite fazer nada. Veja a reforma da saúde nos Estados Unidos, foi sua bandeira. Obama não tem nenhuma possibilidade. Cada presidente dos EUA tem uma guerra. E Obama, que não faria guerra, foi ao Afeganistão e a estendeu. Um desastre. É o mesmo lobby israelita muito forte dos EUA que impede qualquer mudança nos Estados Unidos. É uma plutocracia, não é uma democracia. Quando todos pensávamos que ele não apoiaria o golpe em Honduras, apoiou, em troca de uma base militar em Honduras.
– E dentro desse contexto todo, qual é a análise que o senhor faz do governo do presidente Lula?
BOAVENTURA– Tenho mantido grande solidariedade com o governo Lula ao longo de todos esses anos. Ele é a orientação mais progressista para o Brasil. Acho que ele tem feito uma boa política externa, por uma mudança real na ordem mundial. Agora, naturalmente, tenho algumas objeções e críticas, construtivas. Uma delas é que morreram mais líderes indígenas nos governos Lula que nos de Fernando Henrique. Tem havido muita violência no campo. Tem havido muita insensibilidade ambiental. Não podemos deixar de dizer que o governo brasileiro tem sido cada vez mais insensível com o ambiente e, portanto, tem permitido uma expansão descontrolada do agronegócio. Portanto,o protagonismo ambiental que se esperava do Brasil não foi realizado. Com isso sofreram os movimentos sociais, o MST, os indígenas, os quilombolas. Veja por exemplo como estão os subsídios do estado às escolas dos assentamentos do MST e dos quilombolas. Estamos assistindo a um retrocesso social de algumas conquistas iniciais. O presidente Lula tem sido pouco sensível, nesta parte final de seu mandato, a essas questões. Talvez esteja mais preocupado com a eleição, com as alianças. Há questões problemáticas com a Anistia. É claro que a Lei da Anistia não pode encobrir crimes contra a humanidade, mas isso se tornou um conflito no Brasil e não sabemos ainda como será resolvido. É preciso dar mais legitimidade à democracia no Brasil. Houve toda uma mobilização nesse sentido, com os conselhos, com tudo e choca, no entanto, ainda haver tanta impunidade. Veja o Pará, por exemplo. Tanto trabalho escravo, quantos assassinatos de líderes, advogados. Eu trabalho muito com os advogados populares do Pará, eles vivem sob ameaças. Portanto, há um Brasil, que é um Brasil antidemocrático, de violência, de um fascismo social de certas camadas das classes dominantes. São forças que ainda não aceitaram o jogo democrático e usam como estratégia a violência.
– O presidente Lula poderia ter contornado isso nesses sete anos?
BOAVENTURA – Não sei. Essas mudanças estruturais que estão ocorrendo envolvem uma sociedade que há muito pouco tempo era a mais desigual do mundo. Esses problemas envolvem longos processos históricos. O problema é saber se haverão retrocessos ou não. Portanto, a próxima eleição será um sinal da direção política. É claro que muitos gostariam que ele tivesse avançado mais nas políticas sociais. O Bolsa Família, por exemplo, tão criticado, ajudou muito o mercado interno do Brasil. Assim, temos que nos lembrar do limite das teorias: o copo está meio vazio ou meio cheio? Alguns pensam que está quase cheio, outros quase vazio. Eu gostaria que tivessem ocorrido mais mudanças, na área social sem dúvida, na ambiental e mesmo na engenharia internacional.
– O senhor parece temer que as eleições paralisem o processo de desenvolvimento.
BOAVENTURA– É muito importante que esta década de avanço não seja perdida. Obviamente que eu, sendo de esquerda, prefiro que o PT vença. Não sei se a Dilma será a candidata que resolverá esses problemas. Dilma é muito produtivista, extrativista, até anti-ambientalista. E precisamos de mais políticas sociais e ambientais. Mas ficarei muito feliz se ela ganhar. José Serra é um candidato respeitável, que não se pode minimizar, que tem uma trajetória. Mas penso que seria um retrocesso para a esquerda. Pelo mesmo motivo que Obama. Não é o presidente. São as forças que ele congrega, que o apóiam. Essas forças, como a bancada ruralista, não descansarão enquanto não tiverem mais poder, muito além do que já têm com Lula. Não é Serra, são as suas forças políticas, que tentarão eliminar muitas conquistas dos últimos anos.
Fonte: O Globo