“Fui modelo na Europa, fiz sucesso no Brasil e hoje vivo em Buenos Aires”

FONTEPor André Aram, de Universa
Ângela Côrrea (Foto: Arquivo pessoal)

“Nasci no ano em que a grande cantora Angela Maria, uma das maiores vozes do Brasil foi coroada a rainha da rádio, e mamãe encantada com ela, me deu o nome de Ângela Maria. Minha mãe cantava muito bem, ela teria talvez um futuro brilhante como cantora de rádio, mas casou-se cedo e teve seis filhos. O Corrêa veio do meu pai, quando fiz a minissérie Abolição, o diretor Walter Avancini disse que este nome não dava, e aí passou a ser Ângela Corrêa. Hoje tenho 66 anos e, há 29, vivo em Buenos Aires.

Desde criança, as pessoas diziam que eu tinha porte para ser manequim, embora eu nunca tivesse prestado atenção em desfiles ou revistas de moda. Aos 16 anos, eu já fazia alguns pequenos desfiles em São Paulo, lembro que fiz um desfile muito famoso no Paineiras do Morumby, era a semana internacional da moda, um clube sofisticado, as paredes eram envidraçadas, e meu pai assistiu ao desfile do lado de fora, ele não podia entrar, era somente para convidados, mas foi emocionante.

Aos 18, eu acho, fui em um bar onde se reuniam boêmios, artistas etc e ali conheci o estilista francês Jacques Lelon que me convidou para ir na Têxtil Bayard, ele ia fazer uma coleção chamada Batucada, e ali começou a minha carreira na moda. Desfilei para o Clodovil, Eugênia Fleury, Ornella Venturi e outros, não me recordo todos, pois fiz muita coisa e também desfiles na Hebe, que sempre me tratou com muito carinho.

Dali, fui trabalhar com o Sargentelli (1924-2002) no Café Concerto, logo depois surgiu o convite da companhia de dança Brasil Tropical. Com eles, conheci boa parte da Europa, e quando nós estávamos na Grécia, fomos convidados para fazer um espetáculo no Bobino em Paris para substituir a incrível Josephine Baker (1906-1975), que havia falecido recentemente.

Não me recordo como conheci o Angelo Tarlazzi, que era o estilista de Jean Patou (grife ícone dos anos 1920), e quando terminou a temporada no Bobino, fui trabalhar com ele. Criaram uma coleção inspirada em mim, e com isso nós viajamos para a Ásia, quando voltei, fui para o Moulin Rouge onde fiquei por dois anos. Eu não tinha a noção da magnitude disso, não me deslumbrei, minha única alegria era saber que a minha família estaria orgulhosa de mim. Fiz desfiles também para Paco Rabanne, Yves Saint-Laurent, e outros, eu e a Grace Jones frequentávamos o mesmo café e bares.

Duas vezes protagonista

Minha vivência em Paris foi maravilhosa, os melhores anos da minha vida, eu muito jovem ainda, não esperava por nada disso. Quando o contrato com o Moulin Rouge acabou, voltei para o Brasil, e aceitei duas propostas boas, uma delas da linha de shows da Globo (“Planeta dos Homens”, “Viva o Gordo” etc). Ali, o Avancini me viu e me convidou para fazer um teste para a novela “Abolição” (1988), e fui aprovada para o papel de uma líder abolicionista. Um ano depois, surgiu o convite para fazer “Escrava Anastácia”, na TV Manchete.

Eu não era devota, mas tinha um carinho especial por ela. Me preparei muito para fazer Anastácia. Eu não a incorporei, eu a concebi. Foi o grande marco da minha carreira, fez tanto sucesso que a pedido do público foi reprisada logo depois. Passados 30 anos, até hoje as pessoas se lembram dela. Quando eu vim para Buenos Aires, havia um brasileiro que vivia aqui, e a filha dele estava com um problema nos olhos. Ele queria que eu fosse ao hospital para tentar curar a filha dele, mas isso ele falando com a Escrava Anastácia. As pessoas me olhavam com ternura e com devoção por ela. Ao contrário de Xica da Silva, a Anastácia não era sensual, quando fiz o ensaio nu, não era ali a Anastácia, mas a Ângela Corrêa em alusão a minissérie, mas fora da personagem.

Artistas negros no Brasil e pandemia

A Ruth de Souza (1921-2019) foi a nossa estrela guia, uma atriz que envaideceu a todos nós, que nos guiou, que nos abriu portas, com muito sacrifício. De vez em quando eu fico um pouco surpresa quando aparece alguns livros citando atores e atrizes negras, e embora eu tenha feito duas personagens de grande relevância, eles passam assim em branco pelo meu nome e pelo meu trabalho, alguns outros se lembram. Mas o importante é que eu estou viva e no meio dessa pandemia estar vivo é uma benção, o resto a gente vai lutando como sempre.

Se o Brasil valoriza os seus artistas negros? O Brasil neste momento não está nem se valorizando, não está valorizando o ser humano. O Brasil está na UTI. Então, essa história de valorizar o artista neste momento, valorizar é uma palavra que não está no dicionário do Brasil. Não só não valoriza o artista, pior? Não valoriza a vida. Hoje o Brasil é o cemitério do mundo.

Quanto ao racismo, eu sempre tive vergonha alheia pelos racistas, eu acho que eles são infelizes e enfermos e, não acho que essas pessoas são superiores a mim, isso não quer dizer que o racismo não atrapalhe, éramos poucas na moda, diziam: ‘Já temos uma negra, não precisa de duas’, então branca pode ter várias e negras tem que ser uma? Era assim.

Já passei por situações onde o racismo foi jogado na minha cara, embora talvez eu tenha sido protegida, tendo um parceiro com um prestígio enorme no exterior [o cineasta e político argentino Fernando Solanas], e viajando o mundo com ele, mas, não obstante, às vezes acontecia de chegarmos a um aeroporto e a polícia federal na porta, ele passar e pedirem meus documentos, não era uma coisa constante, mas existia. Eu sonho com um mundo melhor, com um mundo onde a gente possa somar e não dividir.

Fernando Solanas, o Papa Francisco e Ângela Côrrea (Foto: Arquivo pessoal)

A perda do marido para a Covid-19

Meu marido havia sido nomeado como Embaixador na Unesco representando a Argentina, nós chegamos a Paris em julho de 2020, preparamos a residência e, em outubro, fomos visitar o Papa Francisco. Logo depois ele teve os sintomas. O teste de covid deu positivo para ambos e fomos hospitalizados. Eu pensei que ele fosse sair daquela situação, eu tive alta, mas ele não. Nós estávamos felizes, iríamos passar dois anos em Paris, a casa já estava pronta. Voltar a viver em Paris era um sonho antigo, por ter vivido a minha juventude ali. Eu estava cochilando quando fui acordada por um pesadelo, foi muito triste. Foi um dos momentos mais difíceis e ainda estou atravessando por ele, mas tive forças naquele momento para arrumar as malas e voltar para Buenos Aires. Fui com ele em um voo para a França, e retornei sozinha, na verdade, levando comigo as suas cinzas.

Uma artista realizada

Eu me considero uma mulher realizada, nas coisas que me propus a fazer, e busquei fazer da melhor forma e com o coração aberto. Tive a oportunidade de trabalhar com grandes cineastas, fiz cinema, novelas, realizei exposições, recebi prêmio de melhor atriz no Festival de Biarritz, mas eu tenho muita coisa ainda pela frente. Logo essa pandemia vai passar, eu quero rever os meus amigos, quero voltar ao teatro, quero cantar e quero ter netos. O meu sonho agora é que tudo isso termine e que eu possa abraçar a minha família no Brasil, abraçar os meus amigos e que nós possamos voltar a sentir o afeto e a presença das pessoas queridas. Isso é um sonho, e quem está vivo pode sonhar. Quem pode sonhar pode realizar.”

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