Gari defende TCC na Paraíba sobre ‘invisibilidade’ da profissão: ‘Ser a voz de tantos’

Gari concursado Ednilson Silva, de 31 anos, apresentou trabalho sobre invisibilidade dos garis, na graduação em história pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Por Clara Rezende, do G1 

Ednilson Silva defendeu trabalho de conclusão de curso vestido com farda de gari, na UEPB — Foto: Dje Silva/Ednilson Silva/Arquivo pessoal

Em 2013, trabalhando como gari concursado em Pirpirituba, município localizado no Brejo da Paraíba, Ednilson Silva decidiu entrar no ensino superior. Foi aprovado no curso de história da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e seguiu trabalhando e estudando durante cinco anos. Neste mês de junho, utilizando a farda que veste diariamente na função, defendeu o trabalho de conclusão de curso (TCC). O tema foi a “invisibilidade” dos agentes públicos de limpeza.

“É notório no campus: as pessoas que exercem a função de policial vão fardadas, pessoas que fazem medicina ou enfermagem vão de jaleco. Por que um gari não pode ir (fardado)? Eu digo ‘eu vou apresentar, vou ter coragem e eu vou. Para dar mais visibilidade também ao tema e aos garis’”, destacou.

Apesar disso, Deninho, como é conhecido pelos amigos, contou que nem sempre “vestiu a camisa” da profissão. Segundo o formando, de 31 anos, no começo do curso, em 2014, a vergonha e o receio fizeram que ele demorasse cerca de um ano para compartilhar a experiência com os colegas e professores, no campus de Guarabira.

“Depois eu percebi a importância social que tem a profissão. Hoje me identifico com ela e gosto do que faço. Eles [os colegas e professores] ficaram felizes. Ficaram ‘ah, que massa a sua história’. Até hoje eles se surpreendem, antes mesmo dessa repercussão eles já vibravam com meu TCC”, afirmou.

Ednilson relatou que concluiu o ensino médio em 2006, mas não alcançou a nota necessária para ingressar em um curso superior naquele ano e nem na tentativa seguinte. Após isso, decidiu se dedicar aos concursos públicos.

Ele fez várias provas, para diferentes cargos e em diversas cidades, até decidir, ainda que relutante, tentar seguir a carreira de gari, trabalho já realizado pelo pai dele.

“Eu fiquei pensando: meu pai é gari, me sustenta até hoje, a gente vive do salário dele como gari. Um trabalho digno, honesto. Eu digo ‘vou fazer (o concurso) pra gari também, que eu tenho mais chances’. E depois [de aprovado] eu comecei a gostar da profissão. No começo eu tive vergonha, ficava meio acanhado”, afirmou.

Durante o curso, Deninho precisou conciliar o emprego de manhã com os estudos à tarde, além da vida em família, já que é casado e tem uma filha de 2 anos e cinco meses. Embora se identificasse com a área de história, ele comentou, em meio a uma risada sincera, que essa tarefa não foi nada fácil.

“No começo não foi muito bom, não. Tinha essa carga de leitura, eu estava meio enferrujado. Comecei patinando, devagarinho, mas fui me acostumando, aí depois você desenrola, vai conseguindo, levando. E eu sempre gosto de ler, principalmente história. Eu acho que foi o curso perfeito”, salientou.

‘Ninguém fala sobre os garis’

De acordo com Ednilson, inicialmente, o tema do trabalho de conclusão de curso dele não seria voltado para os garis, porém, em meio às leituras, ele se deparou com um autor que chamou atenção e o fez abrir os olhos para a realidade que vivia.

“Com o passar do tempo, eu fiquei pensando, eu digo ‘eu vou pesquisar alguma coisa sobre os garis’. E não encontrava nada, nada mesmo. Eu digo ‘caramba, ninguém fala sobre os garis’. Aí encontrei uma matéria falando sobre um cara chamado Fernando Braga da Costa”, disse.

A obra encontrada por Deninho foi o livro “Homens invisíveis — Relatos de uma Humilhação Social”, do autor que tem mestrado e doutorado voltados para o tema que o gari desejava estudar. Os relatos de Fernando encantaram Ednilson.

“Então eu digo: nada melhor do que o próprio gari falar o que sente, o que passa”, contou.

Com o auxílio da orientadora, Verônica Pessoa, o formando desenvolveu o estudo, que recebeu o título de “Trabalho e desigualdade social na contemporaneidade: reflexões sobre os agentes de limpeza pública”. Para isso, entrevistou 10 profissionais atuantes e, com eles, compartilhou as experiências.

Estudo de Ednilson foi voltado para a profissão de gari, que exerce na Paraíba — Foto: Dje Silva/Ednilson Silva/Arquivo pessoal

Segundo ele, por mais introdutório que seja, o trabalho tem a proposta de “plantar uma semente” e de trazer à tona o debate sobre a importância social desses profissionais, a valorização econômica e a necessidade de melhorias na qualidade do trabalho. “Fazer com que as pessoas vejam. Deem um bom dia, uma boa tarde, atenção”, frisou.

Um dos sonhos de Ednilson é que o trabalho possa, um dia, virar um livro, para que as pessoas conheçam não somente a história dele, mas de todos os personagens que fizeram parte do estudo e são invisibilizados cotidianamente.

Pesquisador inspirou gari

O pesquisador Fernando Braga foi um dos grandes inspiradores para o trabalho final de Deninho. A pesquisa “Garis: um estudo de psicologia sobre invisibilidade pública”, dissertação de mestrado de Fernando Braga, também busca discutir a questão da invisibilidade pública.

O estudo é uma percepção humana sobre a divisão social do trabalho e o olhar mecânico de enxergar apenas a função, e não a pessoa. O psicólogo Fernando Braga da Costa defendeu seu mestrado no Instituto de Psicologia (IP) da USP em novembro de 2002.

Fernando ressalta que essa atitude é uma prática resultante das diferenças sociais nas diversas classes existentes. Segundo ele, quanto mais próximo se está da pessoa, mais consciência sobre essa invisibilidade pública se tem. O resultado do distanciamento, segundo o pesquisador, é que pessoas passam a ser entendidas como coisas, chegando a ser imperceptíveis.

Fernando Braga trabalhou durante cinco anos como gari, durante o a pesquisa de campo, no mínimo meio período, de um a três dias por semana no campus da Cidade Universitária de São Paulo. Nesse período, ele cursava o segundo ano da faculdade.

Ser a voz e o rosto dos garis

Sobre a escolha de realizar a apresentação vestido com a farda, Deninho afirmou que, embora não esperasse uma grande repercussão, sabia que a atitude causaria estranhamento. Contudo, essa também era a intenção dele: tornar concreto o objetivo do estudo. A defesa ocorreu no dia 11 de junho.

“Eu estava construindo esse trabalho sobre os garis, eu disse ‘ah, a gente veste essa roupa diariamente e não é visto, se torna invisível’. Eu estou falando da invisibilidade, então… Eu tinha noção de que ia causar um estranhamento, um choque de realidade”, destacou.

Ao relacionar o TCC com o curso de história, Ednilson afirmou que é papel do historiador “tornar o invisível real e audível”, para que novos personagens possam ser conhecidos e lembrados.

“Eu fico feliz porque hoje eu estou tendo a oportunidade de falar, de ser a voz, de ser o rosto de tantos garis Brasil afora, que são invisíveis socialmente”, pontuou.

No trabalho defendido na UEPB, Ednilson quis dar voz aos garis — Foto: Dje Silva/Ednilson Silva/Arquivo pessoal

Com a data da colação de grau marcada para julho, Deninho continuará trabalhando como gari, entretanto, afirmou que espera dar continuidade ao estudo, aprofundá-lo, em um mestrado e, futuramente, no doutorado, além de pensar em ser professor.

“Sei que a dificuldade não é só se formar. Do jeito que eu estou conseguindo, com o meu trabalho, fazer com que as pessoas enxerguem o papel do gari, eu acho que, dentro de uma sala de aula, como professor, eu vou poder conscientizar as crianças desde pequenas, os adolescentes. Eu vou ter um papel social mais ativo”, destacou.

*Sob supervisão de Taiguara Rangel

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