Temos repetido inúmeras vezes, para nós mesmos e para os nossos pares, que estamos em um momento em que precisamos furar a bolha. Mas não é de hoje que a comunicação do terceiro setor tem seus desafios de linguagem e de entendimento. O contexto atual ampliou essa necessidade de diálogo, porém, ela está posta há muito tempo.
por Maria Alice Setubal e Fernanda Nobre no Linkedin
Se pensarmos pela perspectiva da comunicação institucional com territórios de atuação, quais seriam os melhores canais de mobilização? De que forma uma organização do investimento social privado chega aos territórios e se comunica?
Acreditar em uma fórmula pronta é o primeiro pressuposto para dar errado. Aqui não funcionam aplicações determinadas como responder o que, quem, onde, como e por que – o famoso lead das matérias jornalísticas –, e, bingo, seu “leitor” está conquistado.
Os territórios são plurais, as periferias são plurais. Entender quais são os melhores canais e qual é a linguagem que consegue provocar o interesse de moradores depende de uma escuta aberta e também de um fazer com. E, muitas vezes, temos que deixar o nosso encantamento pela magia dos comandos do Facebook, ou do Instagram, porque o que vai prevalecer é o bom e velho carro de som, ou o bate-papo e o cafezinho de porta em porta, liderado por moradores que já estão envolvidos nas ações e conhecem como ninguém o bairro onde moram.
Claro que, muitas vezes, na intensidade do dia a dia e nas inúmeras frentes a que os comunicadores das instituições devem atender, parece uma missão quase impossível. Mas essa janela se abre quando conseguimos enxergar que a equipe toda tem um papel comunicacional e pode trazer elementos fundamentais para esse processo, e, em alguns momentos, assumi-lo.
O território importa! Esse pressuposto orienta a atuação da Fundação Tide Setubal na sua missão de contribuir com o desenvolvimento das periferias urbanas e no enfrentamento das desigualdades. Ele perpassa nossas escolhas o tempo todo, desde a formação de nossa equipe, que sempre teve pessoas que moram nos lugares onde atuamos – e, sim, essa opção fortalece nossas formas de comunicação, em uma união de olhares para mensagens que pedem cuidado, respeito e fuga de estereótipos.
O olhar para o território e para o nosso papel passa também pela busca por ser plataforma, e este talvez seja o momento no qual a comunicação amadurece e amplia sua atuação para além do institucional. Há três anos, desenvolvemos um plano de conteúdo pensando em um movimento estratégico para a comunicação de causas. O foco no desenvolvimento das periferias urbanas e no enfrentamento das desigualdades socioespaciais coloca obviamente os moradores das periferias como nosso público, e nos perguntamos de que forma falaríamos de desigualdades com quem mora nas diferentes regiões da cidade.
Olhando sempre para os territórios, nos aproximamos da Rede Jornalistas das Periferias, em uma parceria que começou com o apoio à Virada Comunicação e evoluiu para um projeto maior que ganhou o nome de No Centro da Pauta. Nele, reportagens, vídeos, podcasts, grafites colocam em debate diferentes temas acerca das desigualdades nos territórios. As fontes e o foco das pautas seguem a proposta de cada canal, que tem seu público, sua audiência e sua linha editorial. Nosso papel é de fortalecimento, de compartilhamento, e, acima de tudo, de crença e de parceria nessa comunicação produzida pelos territórios e para os territórios.
Outra frente que abrimos nesse sentido foi com a produção audiovisual. Começamos com a série Letras Pretas. Nosso canal no YouTube ainda nem existia, mas queríamos levar o Festival do Livro e da Literatura de São Miguel a outros lugares da cidade. Nosso desejo era mostrar a força da produção literária das periferias, a produção cultural viva e potente, para quem está acostumado a saber desses territórios pelas notícias da TV, que têm um recorte sempre bem alinhado com ausências e carências (adjetivação que eles adoram adotar).
Ocupamos o canal Mova, responsável pelas produções da Monja Coen, com a websérie Letras Pretas. Os quatro episódios contaram com escritores e escritoras que apresentaram seu trabalho, sua história e a importância da literatura negra, temas completamente novos para aquela audiência. O canal chegou a receber comentários do tipo “não estamos entendendo, onde está a Monja?”. Mantivemos a estratégia e a experiência foi um sucesso. Fechamos o projeto com um webinário que apresentava o festival pelo olhar dos personagens da série e foi um momento lindo de encontro ao vivo entre quem estava na série e o público da Monja.
Essa experiência inspirou a criação do Canal Enfrente. A escolha de ser uma plataforma capaz de gerar espaço de visibilidade para pessoas e projetos que estão alinhados com nossas causas também acompanha essa frente de comunicação. Optamos por um nome não institucional para ter a nossa bandeira acima de qualquer escolha. Temos a websérie Enfrente, com diferentes personagens que falam das suas transformações pessoais e das mudanças em seus territórios, pela perspectiva da potência, porque é nela em que acreditamos como instituição. Criamos também a série Encontros e Fronteiras, que traz em sua essência o objetivo de criar pontes e promover o diálogo entre vozes e pensamentos diferentes.
A pergunta que nos fazemos o tempo todo com a produção do canal Enfrente é: nós gostamos, mas quem está fora da nossa bolha também gosta? Monitoramos e testamos o tempo todo. As duas séries principais foram lançadas em novembro, quando o caldeirão do contexto atual fervia em alta temperatura (não que ele tenha esfriado). Os retornos que temos via redes, quando optamos pelos recortes de divulgação e impulsionamento para um raio maior do que os amigos da nossa linha do tempo, é diverso. As histórias de superação trazem elogios, desde que não perpassem as lutas identitárias. Quando os personagens colocam causas LGBT ou feministas em primeiro plano, recebemos ataques. Mas, se a história trouxer a família e a busca por oportunidades, a recusa diminui.
Tomamos emprestada uma frase final de Amelie Poulain para dizer e acrescentar: o mundo não está fácil para os sonhadores, nem para os comunicadores. Temos nos perguntado diariamente: como construir uma narrativa que consiga a aproximação de um público diverso para nossas causas? Como não ficarmos conversando apenas com quem já está convertido?
A primeira resposta é: precisamos conhecer, ouvir, nos aproximar. Lançamos no último dia 10 de junho a pesquisa O Conservadorismo e as Questões Sociais. Em parceria com o Plano CDE, ouvimos 120 pessoas em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Na roda de debates, ao lado de Esther Solano e Mafoane Odara, estava Henrique Vieira, teólogo, cientista social, pastor da igreja evangélica. Saímos da conversa com a sensação de que, se ficássemos mais 15 minutos com Henrique, estaríamos convertidos. Brincadeiras à parte, no final, ficamos agradecidas ao Henrique. Foi muito bom ouvir pessoas que nos mostraram que, sim, é possível ter escolhas diferentes com pontos e pontes de convergência. É possível enxergar na crença do outro uma abertura para o diálogo.
Para encerrar este artigo, destacamos uma outra conversa. Em 2018, lançamos a pesquisa Emergência Política Periferias, realizada em parceria com o Instituto Up Date. Antes de uma entrevista, conversando com uma jornalista, dizíamos que a pesquisa mostra a inovação presente nas periferias, mostra que as periferias não são um lugar da ausência, que precisamos mostrar outras histórias. Ela parou e disse: “Nossa, então é para os jornalistas também? Para mudar o nosso olhar?” A resposta foi que sim; que era bem importante essa mudança de olhar. Parece óbvio, mas nem sempre é.
Maria Alice Setubal, presidente da Fundação Tide Setubal e Fernanda Nobre, coordenadora de comunicação da Fundação Tide Setubal.