O nome do evento promovido por Geledés- Instituto da Mulher Negra nesta terça-feira 30, no Palácio das Nações, em Genebra, já diz tudo sobre as intenções da organização liderada por mulheres negras no cenário global, frente ao escalonamento da extrema direita nas ameaças de aniquilamento de conquistas históricas. “Estratégias para Avançar a Justiça Reparatória para Africanos e Afrodescendentes na Arena Internacional” reuniu altas lideranças diplomáticas das Nações Unidas e relevantes organizações da sociedade civil para discutir um tema que se torna cada vez mais urgente e incontornável.
O encontro coincidiu com marcos históricos, uma vez que a União Africana declarou 2025 como o Ano da Justiça para Africanos e Afrodescendentes e a ONU anunciou a Segunda Década Internacional para os Povos Afrodescendentes (2025-2034). Mas os participantes foram unânimes em afirmar que, sem implementação efetiva, essas declarações continuarão a ser marcos normativos vazios. A centralidade do evento residiu justamente na insistência de que a reparação não pode ser reduzida a gestos simbólicos: trata-se de uma exigência estrutural de redistribuição de poder, de recursos e de avanços das narrativas.
O assessor internacional de Geledés, Gabriel Dantas, foi enfático ao sublinhar, como já vem fazendo em outros fóruns, que se torna ineficaz qualquer tipo de iniciativa em relação à justiça reparatória se não houver enfrentamento às bases econômicas do sistema internacional. Dantas retomou propostas concretas já apresentadas por Geledés em outras ocasiões como “a reforma da arquitetura financeira global; a construção de um papel antirracista para o financiamento do desenvolvimento – dos bancos multilaterais às instituições públicas; e a garantia de que os investimentos em larga escala, da infraestrutura à ação climática, incorporem critérios de impacto racial e de gênero, acesso direto a iniciativas lideradas por afrodescendentes e mecanismos de não repetição”.
Para o assessor internacional de Geledés, a justiça reparatória só será calcificada se penetrar diretamente no coração decisório dos órgãos responsáveis pelos fluxos financeiros e por políticas de desenvolvimento: “as atuais negociações da Convenção Fiscal da ONU, por exemplo, deveriam ser atravessadas por essa lente”, afirmou ele.

Essa perspectiva de transversalidade foi abraçada por Sara Hamood, chefe da Seção de Anti-Discriminação Racial do OHCHR, que insistiu na necessidade de haver um arcabouço interseccional. Para ela, apenas uma abordagem holística é capaz de capturar a complexidade dos fatores estruturais, institucionais e históricos que marcam a vida de africanos e afrodescendentes. “O relatório de 2024 reconhece não apenas a responsabilidade dos Estados, mas também de instituições privadas, acadêmicas, religiosas e empresariais que lucraram – e continuam a lucrar – com os legados da escravidão e do colonialismo”, sublinhou. Hamood reforçou ainda que reparação e justiça climática são dimensões indissociáveis, e que uma nova arquitetura internacional de desenvolvimento precisa acontecer para refletir esse vínculo.
Se a interseccionalidade de gênero e raça aponta os múltiplos eixos das desigualdades, a necessidade de transformação estrutural foi exposta por Tracie L. Keesee, do EMLER, mecanismo das Nações Unidas criado em 2021. Neste sentido, Tracie apresentou um caminho para aprofundamento das reformas. “As mudanças não podem se restringir a políticas superficiais ou ajustes marginais; é preciso desmantelar as fundações que permitem que as disparidades raciais persistam. O EMLER já compilou um conjunto de recomendações concretas para avançar nessa transformação, e continuará a pressionar para que sejam implementadas”.
O mesmo tom de urgência apareceu na fala de Bina D’Costa, presidente do WGEPAD (Working Group of Experts on People of African Descent) ao destacar que “assistimos hoje a uma crescente demanda por justiça reparatória justamente em um momento em que há retrocessos globais nos direitos humanos”. Para ela, a reparação é inseparável de outras lutas históricas: “o custo das reparações deve ser arcado por aqueles que perpetuaram ou lucraram com esses crimes – sejam Estados ou entidades privadas”. Sua fala explicitou um ponto central: sem enfrentar a lógica do lucro que sustentou e ainda sustenta o racismo estrutural, não haverá justiça duradoura.
O caráter político dessa agenda foi reforçado pelo embaixador Martin Kimani, presidente do Fórum Permanente de Afrodescendentes das Nações Unidas (PFPAD), que defendeu a reparação como um caminho para descolonizar a ordem internacional em múltiplas dimensões: “não se trata apenas de reconhecimento, mas de medidas concretas como restituição, compensação, reabilitação, garantias de não repetição, reconciliação e justiça climática”. Para ele, é papel da sociedade civil liderar esse processo, mas cabe aos governos criar as condições para que suas vozes sejam protegidas e amplificadas.

A pluralidade de perspectivas foi sintetizada por Lamar Bailey, da UNARC, ao destacar que não existe uma definição única de reparação: “ela não é entendida da mesma forma em todo o continente africano e na diáspora. É preciso reconhecer essas complexidades e permitir que cada nação enfrente suas responsabilidades diante da escravidão e do colonialismo”. Essa afirmação deixou claro que, embora o conceito de reparação seja global, sua tradução prática deve respeitar as especificidades de cada contexto histórico e geopolítico.
Ao final, o evento organizado pelo Geledés demonstrou que a justiça reparatória não é um capítulo paralelo e isolado na agenda internacional, mas parte de um eixo transversal que deverá ser atravessado por todas as negociações multilaterais – da Convenção Fiscal da ONU às discussões sobre financiamento climático, da cooperação para o desenvolvimento às reformas da governança global. Em momento que se discute a real validade da democracia, reparar significa construir um futuro justo, de forma que desenvolvimento sustentável e antirracismo caminhem juntos. Como ficou evidente em Genebra, sem reparação, não é possível haver justiça; e sem justiça, não é possível um futuro democrático.