Gênero e educação: um paradoxo atrás do outro – Por Adriano Senkevics

Na questão gênero e educação, a escola é acusada de discriminação sexista justamente na época em que passa a incorporar, escolarizar e formar as garotas. Esse é o primeiro paradoxo relacionado a gênero e educação, de acordo com o sociólogo francês Bernard Charlot (2009). Continuando o debate iniciado no texto anterior, há um segundo paradoxo, absolutamente complexo e instigante: as meninas, vítimas da discriminação sexista dentro e fora da escola, apresentam os melhores resultados ao longo de sua trajetória escolar.

Se estivéssemos pensando a partir da chave que associa “grupos oprimidos” ao obstáculo que eles enfrentam na sociedade, entraríamos em colapso. Porque, seguindo essa lógica, nossas atenções recairiam sobre os meninos no tocante à escolarização. Isso, de fato, aconteceu em países do Norte global. Recentemente, lançaram um documentário alarmista nos EUA chamado The Mask you Live In sobre uma suposta tragédia que afeta os garotos. E já faz algumas décadas, nos países anglófonos, que a preocupação com o desempenho escolar dos meninos tem alimentando um discurso conservador e antifeminista, grosso modo, ao culpar as lutas feministas pelo “fracasso” dos meninos e homens.

Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

Felizmente, a coisa é mais nuançada que isso. As desigualdades educacionais vêm aos olhos porque, entre outras, invertem a lógica predominante nos diferentes meios sociais: as meninas, apesar de toda discriminação sexista e do machismo (que tem, sim, um peso sobre suas vidas), estão superando os rapazes na escola. Essa observação não pode ser estendida para o mercado de trabalho. Lá, os homens continuam na dianteira, pois há muitos outros condicionantes que afetam a alocação das mulheres no mercado: as profissões escolhidas, as áreas valorizadas, o sexismo institucional, as possibilidades de ascensão etc.

Em todos esses casos, a escola não pode ser culpada pelas desigualdades no mercado de trabalho, conforme defende Adriana Marrero (2008), simplesmente porque não é a escola que controla o mercado! Talvez seja o caso de mudar o raciocínio e pensar que, ao contrário da maioria das esferas sociais, a escola seja um ambiente de menos discriminação. Essa constatação não anula, de forma alguma, as denúncias de sexismo e a reflexão sobre processos implícitos de desvalorização das mulheres presentes na instituição escolar.

Mas, se é verdade que a escola possa ser um ambiente bastante machista, é fato também que há outras possibilidades – positivas – para as garotas. Caso contrário, elas não apresentariam o sucesso escolar que hoje ostentam. Como entender esses processos? O que, em suma, deve estar favorecendo o desempenho escolar das garotas? Essas questões estão motivando a pesquisa educacional há décadas e estaria fora do escopo deste texto abordar a variedade e riqueza de resultados obtidos.

 

O que cabe ressaltar, na onda do que conclui Charlot (2009), é que o discurso universalista de que a educação é para todos/as estaria sendo levado a cabo pelas meninas. Primeiro, pois o “machismo nosso de cada dia” pode ter feito com que as mulheres, bem ou mal, se acostumassem com situações de discriminação sexista. Elas sabem que, ao saírem à rua, vão ouvir cantadas e assobios, por exemplo. A igualdade de gênero na mídia, no trabalho, na rua, nas relações afetivas, não é uma realidade e as moças percebem isso em suas experiências diárias. A novidade, talvez, seja a possibilidade de que via escolarização elas podem conquistar mais do que conseguem em um cotidiano marcado pelo sexismo.

E não vale apenas olhar o lado do “ensinar” – o que a escola está fazendo com as meninas – e sim o lado do “aprender”, isto é, o que as meninas estão fazendo na escola. Apesar da discriminação (ou motivadas pela discriminação), as garotas podem estar mobilizando seus esforços para, por meio da escola, buscar a concretização de um projeto de vida o qual se confunde com um projeto de independência e emancipação. Ao olharem ao seu redor e se depararem com a violência de gênero, as profissões menos valorizadas, a objetificação do corpo feminino etc, muitas meninas podem estar, conscientes ou não, investindo na escola como uma forma de superar tais empecilhos.

 

A escola é meritocrática é premia quem apresenta bons resultados. Não basta ser inteligente, ser um gênio, ser “foda”. Idealmente, tem que mostrar, provar, responder, fazer. Se as meninas fazem, elas ganham boas notas. E para fazer, elas mobilizam seus esforços. Ainda, vale mencionar que a escola não é a primeira vez na vida em que as mulheres devem fazer prova de si mesmas. No tecido social, as relações desiguais entre homens e mulheres já demandam delas um esforço sobre-humano: “A mulher aprende a viver com e contra a dominação”, destaca Charlot (2009, p. 171), “a aguentar as lógicas dominantes contornando-as por outras lógicas, ‘subversivas'”.

Em meio a tantos paradoxos, o autor encaminha a reflexão tecendo considerações sobre três pontos. Em primeiro lugar, a hipótese de que, em um mundo onde os valores são masculinos, a forma pela qual as mulheres aprendem a lidar com tais situações traz-lhe benefícios nas interações sociais. Para elas, que já aprenderam a suportar tanta coisa, é mais fácil ser tolerante a condições que para os homens soariam extremamente incômodas. Eles, por serem mais paparicados, seriam menos valentes, menos persistentes, menos responsáveis. A postura que se exige das garotas poderia, assim, acarretar um efeito positivo em sua escolarização, a qual exige compromisso, dedicação e seriedade.

 

O segundo ponto diz respeito a Razão e a inteligência de que tanto os homens quanto as mulheres são dotados/as. A diferença é que, nos meios sociais, exalta-se a tal da “sensibilidade feminina” – a noção biologizante de que as mulheres seriam dominadas por seus hormônios, o que explicaria o seu suposto descontrole, impulsividade e emotividade. Nada mais dominador e masculinista do que encerrar as mulheres na tal onipotência da TPM. Ora, na escola esses “hormônios” são o de menos. O que realmente importa é a dedicação, o estudo, o aprendizado, os quais poderiam aflorar entre as meninas, finalmente, na instituição escolar.

Terceiro ponto: quando se fala em “a mulher” devemos entender que a heterogeneidade de mulheres é bem alta, havendo também alunas que fracassam na escola. É mais do que sabido que as experiências femininas são diversas e se modificam intensamente quando em diálogo com outros “marcadores sociais” como cor/raça e idade. As mudanças sociais pelas quais as sociedades têm passado podem ocasionar formas distintas de relação entre mulheres e homens, meninas e meninos, e entre esses sujeitos e as instituições. Com o tempo poderemos dizer se esse “sucesso” feminino na escola continuará existindo ou, em caso positivo, se continuará contrastante ao “sucesso” dos meninos.

Por fim, é importantíssimo enfatizar que, ao se refletir sobre o sucesso escolar advindo de uma situação de opressão sobre as mulheres, não se está dizendo que é a discriminação de gênero que causa o sucesso escolar. Caso contrário, a fórmula ideal seria: oprime as mulheres e elas serão bem sucedidas na escola – um absurdo! “A discriminação de gênero não é a causa do êxito das moças na escola; a causa é sua atividade intelectual, o fato de que elas estudam e são inteligentes”, resume Charlot (2009, p. 173). O essencial é compreender como a discriminação sexista cria um contexto a partir do qual devemos compreender as desigualdades educacionais pesando a favor das meninas.

Fonte: Ensaios de Gênero

 

+ sobre o tema

Os Estados e a universidade pública

Por: PAULO GABRIEL SOLEDADE NACIF   A rede de...

Estudantes protestam contra adoção do Enem pela UFMG

Mais de mil alunos de cursinhos e escolas particulares...

Temática afro-brasileira terá publicação de obras didáticas para o Ensino fundamental

por: Ionice Lorenzoni   Estarão prontas este ano...

Pará e África unidos pela cultura

O olhar cinematográfico o acompanha desde a infância,...

para lembrar

Uso de meios digitais na educação pode melhorar aprendizagem

A inclusão de recursos digitais em salas de aula...

Candidato poderá desistir de vaga no Sisu; MEC institui lista de espera para sistema

Os candidatos que concorrem a vagas em instituições federais...

4,1 milhões de crianças e jovens estão fora da escola, diz MEC

Mais de 4,1 milhões de crianças e jovens em...

Dicas para lidar com o racismo na sala de aula

Não é fácil abordar a questão do racismo na...
spot_imgspot_img

Educação dos ricos também preocupa

É difícil imaginar o desenvolvimento de uma nação sem a participação ativa dos mais abastados. Aqueles que, por capricho do destino, nasceram em ambientes...

Inclusão não é favor

Inclusão não é favor. Inclusão é direito! Essa é a principal razão pela qual ações voltadas à promoção da equidade racial devem ser respeitadas, defendidas e...

Promessa de vida

O Relatório do Desenvolvimento Humano, divulgado nesta semana pelo Pnud, agência da ONU, ratificou a tragédia que o Brasil já conhecia. Foi a educação que nos...
-+=